Recursos Educacionais Abertos: da ética colaborativa à base jurídica (neo)autoralista

João Ademar de Andrade Lima
Geraldo Magela Freitas Tenório Filho
Salomé Margot Melo Ferreira

O presente artigo foi originalmente publicado no contexto lusitano, figurado como capítulo do livro ibérico “Rumo à inclusão educacional e integração das TIC na sala de aula” – Santiago de Compostela: Editora Andavira, 2014, 745p. (ISBN 978-84-84087-25-0)

1. Introdução

O construto aqui textualizado é o resultado da convergência de duas atividades acadêmicas: de uma ponta, as lucubrações teóricas iniciadas no corpo da Tese de Doutoramento intitulada “Conhecimento aberto e os ‘novos’ Direitos de Autor numa nova práxis educativa”, em andamento, sob a orientação do Professor Joaquim José Jacinto Escola, no programa de 3º Ciclo em Ciências da Educação da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD); e, de outra, as digressões realizadas junto ao grupo de investigação “Antropologia da Política, Cultura Midiática e Práticas Políticas”, cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa no Brasil (DGP) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e certificado pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Brasil, especificadamente junto à linha intitulada “Novas Tecnologias, Sociabilidade e Política”, sob a orientação do Professor João Ademar de Andrade Lima, por bacharelandos do curso de Direito da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do Centro de Ensino Superior e Desenvolvimento (Facisa/CESED).

Como foco, buscou-se reflexão acerca da conceituação, historicização e embasamentos éticos e jurídicos aos nomeados Recursos Educacionais Abertos, aqui reputados, dentro de uma caracterização vanguardista à Educação do Século XXI, como exemplos pujantes de novas práticas educativas hodiernas – mormente diante das mudanças comportamentais advindas com os novos media, consubstanciadas por um cada vez mais mutante aparato tecnológico, base para o que recentemente se chamava de “Novas Tecnologias da Informação e Comunicação” – ou, simplesmente Novas TIC – hoje, apenas, TIC, da qual a Internet é seu principal canal.

De tal ponderação, optou-se, também, equivalente associação a outros fenômenos sociais, políticos, jurídicos etc. suportados – qual um sustentáculo inquebrantável – por toda uma lógica representativa da construção de uma inédita ordem cultural, ora nomeada “cibercultura”, através da qual, elementos educacionais clássicos, afetos a passividade comportamental, urgiram conversão à ação proativa daqueles que, de atingidos – estanques coadjuvantes na recepção da informação – converter-se-iam em atores principais na construção do conhecimento, cada vez mais coletivizado, não só quanto ao pólo receptor, mas, sobretudo – e eis o veículo potencial da nova era –, ao pólo emissor.

Neste elenco conceitual, encontra-se uma das principais mudanças contemporâneas no Direito, enquanto Ciência, qual seja, um novo direcionamento teórico-interpretativo aos Direitos de Autor, notadamente ressignificados com a abertura dada pela web ao acesso de conteúdo e, consequentemente, o incremento na possibilidade de criação, recriação e publicização de material próprio e de terceiros.

Fulcrado, pois, nesse diapasão digressivo, o presente texto parte do resgate à inata característica humana do colaborativismo – hoje revivificado no crowdsourcing – como uma própria ação “neo-antropofágica”, ensejadora de todo um substrato conceitual que perpassa as bases do open source, do remix, do fair use intelectual, da cultura do compartilhamento etc., na perspectiva de aproximá-los às novas aplicações do Direito de Autor e, elas, às novas práticas educativas dos REA, possibilitando diferentes formas de interação e contribuição empírica e científica ao fazer jurídico e pedagógico, com metodologia galgada nos postulados do copyleft e já empregada em atividades investigativas de diversos professores, grupos e universidades – inclusive com boa difusão na Europa.

2. O ser humano como um ente colaborativo

Com o advento da rede mundial de computadores, a facilidade à divulgação e ao acesso de obras intelectuais se tornou cada vez mais evidente; base sólida ao surgimento de fenômenos colaborativistas, a exemplo do software livre, o qual “é baseado no princípio do compartilhamento de conhecimento e na solidariedade praticada pela inteligência coletiva.” (Santos, 2008:138).

Neste liame, o movimento em comento surge do inconformismo do ativista Richard Matthew Stallman à dita “privatização do conhecimento”, com a criação, em 1985, da Free Software Foundation, geratriz de uma filosofia “open”, como resposta às restrições de acesso livre ao código-fonte de determinados software, mesmo se tendo ciência de que os seus criadores utilizaram conhecimentos pré-estabelecidos por outros programadores para tal desenvolvimento.

Na visão da FSF, considera-se um software livre quando este atende às quatro seguintes liberdades os usuários: Liberdade 0 = Liberdade para executar o software, qualquer que seja o propósito; Liberdade 1 = Liberdade de estudar o software; Liberdade 2 = Liberdade de redistribuir cópias do software, de modo a ajudar ao próximo; Liberdade 3 = Liberdade de modificar o software e distribuir estas modificações, de modo que toda a comunidade se beneficie.

A partir de então, salvaguardando tais liberdades fundamentais norteadoras, se “reunia e distribuía programas e ferramentas livres, com o código-fonte aberto. Assim, todas as pessoas poderiam ter acesso não só aos programas mais também aos códigos em que foram escritos.” (Silveira, 2003:36). Com isso, a difusão de tais ideários pela Internet em uma dimensão mundial, bem como, a participação de diversos programadores, originou o sistema operativo GNU/Linux, assim chamado pela união do kernel Linux com as ferramentas GNU (acrônimo recursivo para “GNU is Not UNIX”).

O Direito, como regulador dos fatos sociais, não poderia ficar inerte a tais aspectos, de forma que as particularidades normativas demandaram a adoção de um mecanismo jurídico eficaz, no sentido de salvaguardar, aos titulares de Direitos de Autor, a definição dos limites de utilização de suas obras por terceiros. Tal instrumento passou a ser denominado de copyleft, numa alusão explícita à expressão anglossaxônica “copyright”.

O copyleft, ao contrário do que poderia se depreender numa primeira leitura, não se configura como uma oposição ao Direito de Autor clássico, mas, ao contrário, “usa a lei do copyright de forma a garantir que todos que recebam uma versão da obra possam usar, modificar e também distribuir tanto a obra quanto suas versões derivadas.” (Lemos & Branco Júnior, 2006:150).

Sendo assim, intentou-se uma flexibilização da legislação autoralista, de forma a permitir a propagação das obras intelectuais sem maiores restrições; ou seja, por intermédio do copyleft, terceiros podem se valer de tais produções intelectivas em um contexto de livre difusão, bem como alteração daquelas, nos termos da licença conforme os limites pertinentes aos interesses do autor.

O ser humano, desde os primórdios, possui a necessidade de interação com os indivíduos, no cerne da coletividade, visando à troca de experiências necessárias ao desenvolvimento daqueles. Neste viés, o homem hodierno se caracteriza como um ser coletivo e integrante de uma Sociedade em Rede – ao termo, vide Manuel Castells (1999) –, na qual o conhecimento deixa de ser particularizado e estanque, passando a ser propagado com o auxílio dos veículos de comunicação, bem como, da rede mundial de computadores.

Com isso, a normatividade jurídica não poderia ficar estanque a tais relações desenvolvidas, de forma a ultrapassar a tradicional interação física entre o propagador do conhecimento e aquele a figurar como receptor. Destarte, o que se revela com a introdução do copyleft consiste no licenciamento direcionado à livre reprodução da obra intelectual, sem que isto acabe por interferir na tutela conferida ao autor da respectiva produção.

A utilização de maneira justa e razoável da obra intelectual tutelada pela normatividade, sobretudo para fins educacionais, buscou salvaguardar a transmissão do saber de maneira ampla e sem as restrições quanto ao direito de cópia anteriormente definidas, de forma taxativa, como violadoras dos Direitos de Autor. Deste modo, sem qualquer significação de caráter econômico, tem-se a possibilidade de uso legítimo da produção intelectual, consagrando o “fair use intelectual”.

Nesta perspectiva, levando-se em consideração a finalidade pretendida com a divulgação da respectiva obra intelectual, àquela direcionada a fins meramente educacionais, sem buscar a lucratividade, mas a propagação do saber, poderá ser livremente utilizada, desde que cumprida as finalidades pretendidas.

Sendo assim, constata-se um fomento cultural e, como decorrência deste, uma ampliação da capacidade de criação, ao passo que se vislumbra uma gama de ideias e conteúdos apresentados constantemente, não sendo razoável que, como seres humanos em constante processo de aprendizagem, figurasse-se obstado o acesso às criações intelectuais por força de excessivas restrições legais.

Em atenção ao fenômeno proporcionado por força das interações entre os diferentes media, os veículos de armazenamento de informações em rede mereceram uma atenção especial. Diante disso, surgem instrumentos midiáticos digitais, frutos de novas tecnologias de informação e comunicação que findaram por reestruturar significativamente os parâmetros do Mass Media – ao termo, vide Jean Cloutier (1975) –, na medida em que os indivíduos integrantes de um mundo cada vez mais tecnológico passam a introduzi-los no cerne das relações interpessoais, “não apenas ao aparato tecnológico que possibilita a sistematização de práticas de produção, distribuição e intercâmbio de conteúdos digitalizados, mas também à incorporação dessas práticas pelos sujeitos sociais.” (Zanetti, 2011:61). Isso faz com que se vislumbre a incidência do compartilhamento digital, qual uma descentralização do conhecimento, ao passo que todos que vivem no cerne da sociedade em rede passam não só a ter acesso àquele, como também, torná-lo disponível a um número indeterminado de pessoas.

Como consequência, os indivíduos passam a assumir uma maior autonomia no tocante à aquisição e propagação do saber, configurando-se o que se convencionou denominar de “inteligência coletiva”, um novo tipo de pensamento sustentado pelas próprias conexões sociais, através das quais a chamada “cooperação intelectual”, qual uma criação coletiva de ideias, se faz e se sustenta pela Internet, mormente, pelo ciberespaço.

Num norte puramente educacional, tal digressão ganha obviedade e importância singular.


 “A aprendizagem cooperativa, para Lévy, é um sinal que vem apontando para um ensino diferenciado no ciberespaço e que se traduz em inteligência coletiva no domínio educativo. Os professores e estudantes compartilham os recursos materiais e informacionais de que dispõem. O aprendizado se dá num fluxo contínuo tanto para o professor quanto para o estudante que continuamente atualizam seu aprendizado. Por isso, a função do professor não pode mais ser apenas de difusão do conhecimento e sim “animador da inteligência coletiva” dos grupos de estudantes. (…) Educar tem se tornado cada vez mais essencial nos novos tempos. Educar virtual ou presencialmente, em qualquer lugar e em qualquer momento. Educar de forma individualizada, colaborativamente, cooperativamente. Educar continuadamente para a vida. (Carvalho et. alii., 2009:5-6).”


Neste diapasão, é possível aludir os enunciados acima ao contexto da Metáfora do Rizoma – ao termo, vide Deleuze & Guatarri (1995) –, qual uma divagação filosófica, materializada como uma estrutura que representa o conhecimento. Aqui, segundo o princípio de ruptura “a-significante”, acerca dos cortes por demais significantes que separam as estruturas, ou que atravessam uma estrutura, um rizoma pode romper-se, se quebrado em um lugar qualquer, e, ainda assim, retomar segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas. E assim é também o conhecimento, ora fragmentário, ora abruptamente separado, mas invariavelmente revivificado, permanentemente remixado e colaborativamente relido.

Desta forma, cada sujeito partícipe das diversas relações interpessoais contribui com seu respectivo conhecimento em prol da coletividade, de forma que a inteligência passa a ser vislumbrada não como algo estanque e individualizado, mas resultante de sua conversão à ação proativa de seus atores – todavia autores – que, de coadjuvantes na recepção da informação, converter-se-iam em agentes principais na construção do conhecimento, cada vez mais coletivizado não só quanto ao pólo receptor, mas, sobretudo ao pólo emissor. Agentes produtores e consumidores de conteúdo, Prossumidores – ao termo, vide Alvin Toffler (1980) –, potencializadores de sua própria audiência.

A inteligência coletiva consiste em “uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta uma mobilização efetiva das competências.” (Lévy, 1999:28). Neste viés, coadunando-se com seus fundamentos principiológicos, cabe a constatação de que os seres humanos possuem seus respectivos conhecimentos, dentro de suas especificidades e da realidade na qual estão inseridos, o que não se concebe a atribuição particularizada de um conhecimento total por determinado sujeito. Ademais, as ideias existem para serem disseminadas e reinventadas incessantemente, o que as tornam cada vez mais aperfeiçoadas, proporcionado, assim, o progresso da coletividade, aqui simbolizado em sentença atribuída a George Bernard Shaw, segundo o qual: “If you have an apple and I have an apple and we exchange these apples, then you and I will still each have one apple. But if you have an idea and I have an idea and we exchange these ideas, then each of us will have two ideas”.

Corroborando com tais aspectos, vê-se que “é pela interatividade digital que possibilidades descentralizadoras do poder podem se estabelecer.” (Lemos, 2013:72). Assim, todas as pessoas, ao se interligarem, também estão fomentando a troca de experiências e, por conseguinte, de conhecimento. Tal espaço de interatividade e troca de informações é fomentado com o auxílio das tecnologias de informação e comunicação, em especial, a Internet.

Não se pode vislumbrar a existência de mecanismos de comunicação dissociados do fomento à inteligência coletiva, na medida em que estes são providos de uma capacidade dinâmica de armazenamento das informações que lhes são apresentadas por sujeitos que se localizam nos lugares mais diversos do planeta. Diante disso, o conhecimento passa a ser distribuído interativamente, sem maiores entraves, em uma ideologia de não individualização e, sim, compartilhamento.

Neste contexto, em atenção aos ideários do compartilhamento digital de conteúdo, de forma livre, e em convergência à necessidade de propagação do conhecimento, salvaguardados aos produtores de obras intelectuais, emergem formas alternativas de licenciamento público de Direitos de Autor, a fim de incidirem no gerenciamento de suas obras, “autorizando à coletividade alguns usos sobre sua criação e vedando outros.” (Lemos, 2012:283).

Na sistemática que surgem as licenças copyleft, ganham forma novos modelos de “contratos atípicos” – assim nomeados pelo Direito –, resguardados pelo fundamento principiológico da liberdade atribuída às partes para acordarem em coadunância aos seus interesses, desde que em respeito à boa-fé na formação dos contratos e que a ilicitude não verse para o objeto contratual. Sua base consiste em permitir que o conhecimento seja utilizado e compartilhado com o auxílio de licenças jurídicas públicas.

Com o advento dos novos media digitais, a aquisição e reprodução de textos, imagens, vídeos, entre outros, tronou-se cada vez mais fácil, veloz e com menor onerosidade, de forma que “passamos todos de agentes simplesmente passivos para verdadeiros produtores culturais.” (Branco & Britto, 2013:64). Sendo assim, o acesso à cultura passa a ser amplo e irrestrito, contribuindo para a interação cada vez maior dos indivíduos e modificando, exponencialmente, o modo como a informação e o acesso ao conhecimento são realizados.


“Essa solução protege os direitos do autor, que os tem respeitados, ao mesmo tempo que permite, através de instrumento juridicamente válido, o acesso à cultura e o exercício da criatividade dos interessados em usarem a obra licenciada. (Lemos & Branco Júnior, 2006:162)”;


Por conseguinte, é a não privatização do saber, o qual deve ser amplamente resguardado em todos os níveis e sem restrições.  Por força disto, com o impulso à inteligência coletiva, no cerne do ciberespaço, permite-se vislumbrar os diversos fenômenos socioculturais influenciadores da cibercultura. Assim, os aparatos tecnológicos acessíveis à grande maioria da coletividade fazem com que a troca de informações em rede ocorra instantaneamente, ampliando a interação e a propagação do saber.


“A Internet é o tecido de nossas vidas. Se a tecnologia da informação é hoje o que a eletricidade foi na Era Industrial, em nossa época a Internet poderia ser equiparada tanto a uma rede elétrica quanto motor elétrico, em razão de sua capacidade de distribuir a força da informação por todo o domínio da atividade humana. (Castells, 2003:7).”


Em decorrência, fulcram-se as três Leis Fundadoras da Cibercultura – ao termo, vide André Lemos (2009) –, a saber: a “liberação do pólo emissor”, o qual demonstra a desvinculação com a antiga concepção de que o receptor da informação deveria permanecer em sua passividade, passando este também a atuar de forma a produzir sua própria informação e compartilhá-la em rede; a “conexão generalizada”, a partir da qual é perceptível a necessidade de serem utilizados os mecanismos tecnológicos de compartilhamento a fim de incidirem na produção do conteúdo; e, por fim, “reconfiguração de formatos midiáticos e práticas sociais”, atuante como uma das mais evidentes finalidades inerentes à cibercultura, na medida em que esta não consiste em um fim por si só, versando, pelo contrário, para a reestruturação da produção cultural propagada no cerne dos veículos comunicacionais.

Neste enlace, “o ciberespaço é um espaço sem dimensões, um universo de informações navegável de forma instantânea e reversível.” (Lemos, 2013:128). Deste modo, a realidade ensejada por força daquele se apresenta de forma virtual, desvinculada, portanto, do espaço físico; vislumbra uma dimensão paralela àquela em que cotidianamente é-se apresenta, não obstante se apresente cada vez mais palpável a todos por intermédio dos diversos aparatos tecnológicos.

A interação entre as pessoas sem limites cronológicos e territoriais busca salvaguardar a capacidade colaborativa culturalmente inerente aos seres humanos. Por intermédio de tal concepção, no âmbito educacional, torna-se possível, com a desvinculação do modelo tradicional de educação, a partir do qual, os recursos educacionais sejam utilizados livremente, corroborando com o fornecimento de uma aprendizagem de maneira mais eficaz e em sua devida amplitude.

Destarte, com o auxílio dos institutos ora mencionados, pode constatar que os mesmos possuem uma relevância precípua no sentido de fomentar uma maior distribuição de conteúdo, inclusive educacional, partilhando, por conseguinte, o conhecimento que, conforme já corroborado, não se esgota na individualidade do ser aprendente mas, pelo contrário, se expande no compartilhamento, em contribuição para o fomento da inteligência coletiva.

3. O Movimento REA como manifestação ética à propagação do conhecimento

No decorrer do desenvolvimento da sociedade, da produção e das ciências em geral, o ser humano, em dado momento, prestou-se a exercer determinadas atividades dedicadas ao ensino de forma planejada e intencional.

Embora, desde os primeiros tempos, a necessidade de educar já estivesse presente nas mais diversas culturas – inclusive num cenário mundial –, seu exercício, inicialmente, não se condicionava a algum parâmetro ou regra de conduta: educava-se para que o indivíduo pudesse ingressar nas atividades resguardadas aos adultos. Desse modo, o único objetivo, em tese, seria o de transmitir valores tradicionais aos indivíduos para que estes não se diferenciassem dos demais membros de sua comunidade.

O ensino se tornava mecânico, sendo obrigação do aluno apreender todas as ideias que lhes eram transmitidas, pouco importando a capacidade de entender os seus significados. Era, portanto, uma transmissão de valores que, para os imperativos de épocas alhures, se mostrava plenamente eficaz, dada a impossibilidade de os indivíduos questionarem aquilo que estavam “aprendendo”. Assim, a partir do momento em que a sociedade percebeu que, para que houvesse progresso, a formação do indivíduo prescindia da mera transmissão de valores e exigia também que este tomasse consciência de conhecimentos diversificados, os métodos educacionais tradicionalmente conhecidos se mostraram obsoletos.

Embora as necessidades que justificavam a atividade educativa permanecessem as mesmas, em meados do século XVII, com o próprio progresso da humanidade, percebeu-se que era necessária a criação de uma teoria do ensino que direcionasse a prática educativa, tornando-a um processo sistematizado e condicionado a uma preparação do educador e ao planejamento das formas de transmitir conhecimento.


“A assimilação dos conhecimentos não se dá instantaneamente, como se o aluno registrasse de forma mecânica na sua mente a informação do professor, como o reflexo num espelho. No ensino, ao invés disso, tem um papel decisivo a percepção sensorial das coisas. Os conhecimentos devem ser adquiridos a partir da observação das coisas e dos fenômenos, utilizando e desenvolvendo sistematicamente os órgãos dos sentidos. (Libâneo, 1994:58).”


Essa sistematização da educação tornou-se o que se costuma chamar hoje – simplesmente – de “didática”. A didática, como um processo socialmente construído, foi, durante os anos, passível de se adaptar a diversos conceitos sociais, aptos a modificar os princípios nos quais se firmava.

A propósito, a didática apenas formalizou os métodos tradicionais de educação ora existentes, caracterizados pelo intelectualismo, verbalismo e dogmática exacerbados, no qual o professor unicamente dispunha da oralidade para exercer suas funções. É o período no qual os doutrinadores costumam qualificar como Pedagogia Tradicional, no qual se supunha que, “ouvindo e fazendo exercícios repetitivos, os alunos gravam a matéria para depois reproduzi-la, seja através das interrogações do professor, seja através das provas.” (Libâneo, 1994:64).

Com o tempo, percebeu-se que estas práticas educativas tradicionais se tornaram ultrapassadas e os conhecimentos, estereotipados e sem valor educativo vital, desprovidos de significados sociais, inúteis para a formação das capacidades intelectuais e para a compreensão crítica da realidade.

Apesar disso, o âmbito educativo se encontrava em uma constante dicotomia que visava preservar duas atividades:


 “On the one hand education is a matter of assuring continuity, that is, passing on what is known. On the other, it is a matter of fostering creativity and change, that is, propelling learners into the unknown. Both of these functions relate equally to knowledge and attitudes, to understanding and behavior. They are simultaneously complementary and conflictive. They touch the essence of the teaching/learning process. We want creativity, but we want it to emerge from what is known and understood. We want continuity, but when the result is lack of ability to solve problems or devise ways to improve the human condition, we are dismayed. (Haddad & Jurich, 2012:3).”


Assim, somente em meados do século XX, inspirando-se na ideia de que o interesse da criança se desperta através de seu contato com o mundo, juízo defendido anteriormente por grandes filósofos como Jean-Jacques Rousseau e Johann Heinrich Pestalozzi, é que o processo de ensino pôde ser revisto, desenvolvendo-se o movimento da chamada Didática da Escola Nova – ao termo, vide Fernando de Azevedo, et. alii. (2010) –, que deu origem à concepção da Pedagogia Renovada, em contraposição à Pedagogia Tradicional.

Tal movimento, com o objetivo de propugnar a renovação da educação vigente, se propunha à criação de “escolas novas”, através da disseminação de uma nova pedagogia e de métodos ativos, no sentido de que a escola, como ambiente transmissor de conhecimento, deve fazê-lo através de situações de experiência que proporcionem ao aluno a possibilidade de compreender o conteúdo ativamente; ou seja: de relacionar o que aprende com aquilo que ele mesmo vivencia.

Isso significa que a Didática da Escola Nova abandona a ideia de que o aluno é somente um mero receptor de conhecimento; mas, ao contrário, passa a enxergá-lo como sujeito de sua aprendizagem. Portanto, deve o professor não somente transmitir o que sabe, mas “colocar o aluno em condições propícias para que, partindo das suas necessidades e estimulando os seus interesses, possa buscar por si mesmo conhecimentos e experiências.” (Libâneo, 1994:65).

Embora, hodiernamente, alguns doutrinadores e pedagogos ainda rechaçam a adaptação dos métodos educativos àqueles idealizados pela Pedagogia Renovada, mantendo a didática tradicional em resistência aos movimentos pedagógicos modificativos, de modo a prevalecer a prática escolar atual, percebe-se que as evoluções no seio social, principalmente aquelas que advêm dos setores tecnológicos, trazem uma nova perspectiva para dentro desse movimento.


“Las tecnologías de informacíon y comunicaciones (TIC) tienen el potencial y la capacidad de ofrecer diferentes experiencias significativas em los ambientes de aprendizaje, esto es, cuando dicho ambiente se há diseñado con una bien definida y clara intención, com el objetivo de estimular al participante a colaborar e interactuar de diversas maneras (aprendizaje activo). (Montoya & Aguilar, 2010:19).”


A utilização das novas tecnologias de informação e comunicação dentro do contexto educacional, como objetos de aprendizagem, proporcionou aos alunos que se encontram em interação constante com esses elementos de evolução a possibilidade de experimentar, de modo prático e ativo, aquilo que foram conduzidos a aprender na escola, sendo a assimilação do conhecimento facilitada pela correlação lógica daquilo que aprendem com aquilo que utilizam diariamente.

A par do material de cunho autoral disponibilizado de forma livre, para que seja utilizado de forma indistinta, por qualquer interessado, é perceptível que a maioria dos materiais que possuem cunho didático-pedagógico ainda se encontra sob domínios individualizados, os quais impossibilitam sua exploração gratuita, ainda que esta seja socialmente determinada pela necessidade de educar, ou seja, na mais evidente correlação com a base principiológica do fair use.

É nesse contexto que se integram os chamados Recursos Educacionais Abertos – ou, simplesmente, REA –, elementos educativos que possibilitam um maior acesso ao conhecimento, baseados, principalmente, nas iniciativas dos detentores de Direitos de Autor em ceder, através de licenças abertas, conteúdos de cunho acadêmico para que seus usuários possam dele fazer uso, inclusive interpretativo, de forma livre.


“Seguindo os princípios do movimento do software livre e de código aberto (Free and Open Source Software – FOSS), Wiley (David A.) criou o termo “conteúdo aberto” em 1998 para promover a ideia do uso de conteúdos educacionais abertos em diferentes contextos por diferentes professores e alunos e migrando por vários contextos. (Santos, 2013:21).”


Assim, um REA é simplesmente um Objeto de Aprendizagem – ao termo, vide H. Wayne Hodgins (2002) – com uma licença copyleft.


“Importantly, as with “Open Source”, the key differentiator between an OER (Open Educational Resources) and any other educational resource is its licence. Thus, an OER is simply an educational resource that incorporates a licence that facilitates reuse – and potentially adaptation – without first requesting permission from the copyright holder. (Butcher, 2011:34).”


Isso significa que os REA, apesar de inicialmente mostrarem-se como elementos limitadores da detenção exclusiva da propriedade privada, possuem, sobretudo, um cunho ético, que se desvenda a partir do momento em que auxiliam no cumprimento das finalidades sócio-políticas e pedagógicas das inovações autorais, proporcionando as condições e os meios formativos necessários para promover o desenvolvimento da capacidade intelectual e a autoatividade dos alunos, tornando-os independentes e lhes influenciando na formação de novos conhecimentos.

Pode-se, portanto, dizer que os REA se encontram perfeitamente definidos como recursos integradores e realizadores da chamada Pedagogia Renovada, em coadunância às ideias de José Carlos Libâneo, aqui contemporanizadas:


“(Os REA) tomam o partido dos interesses majoritários da sociedade, atribuindo à instrução e ao ensino o papel de proporcionar aos alunos o domínio de conteúdos científicos, os métodos de estudo e habilidades e hábitos de raciocínio científico, de modo a irem formando a consciência crítica face às realidades sociais e capacitando-se a assumir no conjunto das lutas sociais a sua condição de agentes ativos de transformação da sociedade e de si próprios. (Libâneo, 1994:70).”


Embora o objetivo da Pedagogia Renovada e da doutrina da Didática da Nova Escola seja o de possibilitar o desenvolvimento da capacidade intelectual dos alunos através de sua interação com o meio, deve-se perceber que, para que essa interação ocorra de fato, é necessário que o professor disponha de informações, conhecimentos e conteúdos aptos, os quais, por vezes, são somente disponibilizados através do licenciamento para o uso de determinadas Propriedades Intelectuais privadas, enfatizando, assim, a valorização dos REA.

Em remate, a utilização dos REA, ao promover a democratização de conhecimentos, antes privatizados e subutilizados, se justifica, principiologicamente, também na premissa constitucional dos chamados Direitos e Deveres Culturais, com especificação à Educação, Cultura e Ciência, prevista no artigo 73º, 2, da Constituição da República Portuguesa, in verbis:

O Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida colectiva.

Assim, considerando-se o conhecimento, tal qual a educação, como um bem de utilidade pública e, portanto, um bem público, os Recursos Educacionais Abertos têm o potencial necessário para oferecer acessibilidade a todos, flexibilizando a assunção às mais diversas informações e auxiliando no desenvolvimento de novas habilidades por aqueles que deles usufruírem, tornando imperativa sua observação não somente pelo Estado, mas por todos, indistintamente.

4. Os “novos” direitos de autor como suporte aos REA

De uma maneira geral, na antiguidade, os autores intelectuais podiam se contentar apenas com eventual reconhecimento subjetivo de seu talento, sem a ocorrência específica de qualquer menção ao que hoje se entende por direitos relativos à autoria. Em Roma, o trabalho artístico era equivalente a qualquer trabalho manual, ainda que tenha sido justamente naquele Império que o Direito de Autor ganha forma jurídica; na Grécia clássica, civilização de alta produção intelectual, o plágio era praticado e reconhecido, mas a única punição era a condenação da opinião pública, ou seja, uma sanção de cunho meramente moral.

Todavia, ainda que parcamente, o direito à autoria “subjetiva” sempre existiu, diferentemente do seu reconhecimento patrimonial – de propriedade no sentido estrito – cujo início de deu apenas depois da criação da imprensa e da gravura, no século XV, por Gutenberg, a partir da qual as obras nos campos das artes, literatura e ciências passaram a ser exploradas comercial e industrialmente.


“Com o invento de Gutenberg, em 1436, livros passaram a ser reproduzidos em série e a custos mais baixos, perdendo importância a figura do copista, e, devido a maior difusão das obras, promoviam-se não apenas as glórias e honras do autor, mas, especialmente, sua reputação. Como conseqüência, o nome dos autores e as temáticas passavam a agregar valor significativo às obras, ao contrário do trabalho dos que apenas as reproduziam. (Barros, 2007:468).”


Os primeiros privilégios objetivos formalizaram-se com alguns atributos concedidos geralmente por Reis, através de requerimentos dos autores, que juntavam ao pedido um exemplar da obra, apreciada por conselheiros reais que a “aprovariam” ou não; se fosse “aprovada”, era fixado um preço para venda e dado ao autor um direito de exploração comercial, por um prazo determinado.

A primeira vez que se tem notícia da utilização do termo copyright data de 1701, na Stationers Company da Inglaterra, país que, mais tarde, em 1710, editou o reconhecido primeiro texto legal sobre o assunto, chamado The Statute of Queen Anne, com um sistema de privilégios que não concedia direitos de fato, mas licenças, basicamente apenas às obras passíveis de reprodução.

Com a Revolução Francesa, em 1789, o autor intelectual passa a ter o seu verdadeiro direito reconhecido e garantido. Assim, em 13 de janeiro de 1791 foi criada a Carta dos Direitos de Representação e em 18 de julho de 1793 a regulamentação dos direitos de reprodução, cuja epígrafe a definia como “Loi relative aux droits de propriete des auteurs d’écrits ex tout genre, compositeurs de musique, peintres et dessinateurs.”.

Com a Convenção de Berna, em 1886, ata resultante de uma conferência diplomática sobre direitos autorais, ainda em vigência e com última revisão datada de 1971, com ementas em 1979 – Portugal tornou-se aderente apenas em 1978 –, o Direito de Autor adquire sua forma definida, sobretudo na sua dicotomia entre e os chamados Direitos Morais e Direitos Patrimoniais do Autor, corroborado pela natureza jurídica hibrida de Direito Pessoal e Direito Real; inicia-se o seu desenvolvimento nas legislações de vários países.

Em Portugal, o Direito de Autor, ainda que não positivado, remonta a longínquos 512 anos, quando, em 1502, outorgou-se privilégio de edição a Valentim Fernandes, para tradução de Livro de Marco Polo. Mais tarde, em 1537, D. João III concede, a título de exceção, ao poeta Baltazar Dias, privilégio para imprimir e vender as suas próprias obras.

Dogmaticamente, as primeiras normas jurídicas portuguesas relacionadas à proteção autoral de obras literárias e artísticas surgiram bastante depois – contudo em clara concomitância às demais nações do mundo civilizado ocidental –, na Constituição de 1838, com promulgação legal ocorrida em 1851. Nela se consagrava o Direito à Propriedade Intelectual, fulcrada numa raiz notadamente liberal do conceito de Direito Individual do Autor por oposição à ideia de privilégio régio então atribuído aos editores, com diferente percepção à nitidamente herdada proposta anglossaxônica do copyright, segundo a qual haveria um deslocamento da proteção da obra para os volumes em que ela é reproduzida, a saber, do autor ao editor.

Mais adiante na história, é promulgado, em 1927, o então mais amplo Código Português sobre Propriedade Literária, Científica e Artística.


“(Esse) Código de 1927 viria a ser profundamente alterado pelo de 1966, aprovado devido à necessidade de dar conta dos desenvolvimentos tecnológicos entretanto ocorridos bem como a adesão de Portugal a convenções internacionais. (Rosa, 2009:26).”


Por fim, todo o arcabouço evolutivo da norma autoral Portuguesa desemboca com completude sobre o assunto sete anos após a sua adesão à Convenção de Berna, com a promulgação do chamado “Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos”, por meio do Decreto-Lei n.º 63, de 14 de Março de 1985.

Essa cronologia chega aos dias de hoje com profundas releituras, sobretudo após a Diretiva 2001/29 da União Europeia, cujo título já consagra o próprio termo “Sociedade da Informação” como fenômeno base e norteador das mudanças propostas, a saber: “Directive 2001/29/EC of the European Parliament and of the Council of 22 May 2001 on the harmonisation of certain aspects of copyright and related rights in the information society.”.

A partir dela, mudanças substanciais ocorreram nas legislações de várias nações europeias e notadamente também em Portugal, com a Lei 50/2004, de 24 de Agosto, a primeira lei portuguesa na “Era Digital”, “quinta alteração ao Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos e primeira alteração à Lei n.º 62/98, de 1 de Setembro”.

Por outro lado, ainda que revisitado e atualizado, às várias normativas nacionais ainda resta maior coadunação às próprias práticas sociais advindas da “Nova Era”, claramente caracterizada pela colaboração, pela liberdade, pela desapropriação – mais que desterritorialização – e pelo compartilhamento.


“A cibercultura desenvolvida pela utilização mundial da Internet e das redes de dados “on line” caracteriza-se em primeiro lugar, no seu modo de funcionamento, pelo sistema de consulta hipertextual dos dados informacionais. (…) O hipertexto (termo inventado em 1965 pelo documentarista-informático americano Ted Nelson, autor de um projecto muito ambicioso de biblioteca informática) designa precisamente esse modo de consulta arborescente de informações disseminadas através do mundo no interior dos bancos multimédia. (…) A cultura linear da tradição livresca é substituída maciçamente por uma cultura em rede, de malha densa e omnidereccional, com uma infinidade de entradas, que só ela é capaz de abrir o intelecto ao mundo da inter-relação disciplinar. (Chirollet, 2000:126-127).”


Assim, à revelia das normas positivas postas pelas várias nações civilizadas, em oposição ao Direito de Autor clássico, a Sociedade da Informação traz consigo o copyleft, que, como já explanado alhures, nada mais é que um “mecanismo jurídico que visa garantir aos titulares de Direito de Propriedade Intelectual que possam licenciar o uso de suas obras além dos limites da lei, ainda que amparados por ela.” (Manuella Soares, 2009:138).

Nessa perspectiva, surge o Creative Commons, principal modalidade de licença alternativa ao modelo padrão do copyright – promovido, em Portugal, pela Agência para a Sociedade do Conhecimento (UMIC), pela Universidade Católica Portuguesa (UCP) e pelo Centro de Inovação INTELI.

Idealizada, em 2001, pelo norteamericano Lawrence Lessing, a Creative Commons Corporation é uma organização sem fins lucrativos criada para o desenvolvimento de métodos e tecnologias que facilitem o compartilhamento social de obras intelectuais e científicas. É a base para a criação de um sistema de licenciamento público – a Creative Commons Licence, representada pela sigla “CC” – que objetiva, numa visão macro-filosófica, criar uma maior razoabilidade de uso dos Direitos de Autor, em oposição aos extremos atualmente existentes, quais sejam, numa ponta, o all rights reserved – todos os direitos reservados –, monopolista por essência, e noutra o public domain – domínio público.

Através desse princípio, dá-se aos autores, titulares morais e patrimoniais de suas obras, a possibilidade de, publicamente, renunciarem a certos direitos que lhe são concedidos taxativamente por lei. “A vantagem dessas licenças está na criação de padrões que permitem a fácil identificação dos limites de uso concedidos pelo autor.” (Pinheiro, 2009:107).

A principal missão pragmática do Projeto Creative Commons é oferecer um sistema de licenciamento público, por meio do qual obras protegidas por direito autoral possam ser licenciadas diretamente pelos seus criadores à sociedade em geral. (Tridente, 2008:121).


“Em outras palavras, o Creative Commons cria instrumentos jurídicos para que um autor, um criador ou uma entidade diga de modo claro e preciso, para as pessoas em geral, que uma determinada obra intelectual sua é livre para distribuição, cópia e utilização. Essas licenças criam uma alternativa ao direito da propriedade intelectual tradicional, fundada de baixo para cima, isto é, em vez de criadas por lei, elas se fundamentam no exercício das prerrogativas que cada indivíduo tem, como autor, de permitir o acesso às suas obras e a seus trabalhos, autorizando que outros possam utilizá-los e criar sobre eles. (Lemos, 2005:83).”


Com o Creative Commons, novos e velhos autores e demais partícipes das ciências e das artes passaram a compartilhar e permutar suas obras, ensejando a massiva prática da releitura, reconfiguração, remixagem etc.; agregado a si, tem-se o Science Commons, criado para a concepção de estratégias e ferramentas para uma mais rápida e eficiente pesquisa científica no ambiente web. Seus objetivos são identificar as barreiras desnecessárias à pesquisa e promover orientações de políticas e acordos legais para reduzi-las, bem como desenvolver tecnologia para tornar os dados de pesquisa e materiais mais fáceis de encontrar e usar. Já aderiram ao science commons: o Public Library of Science + PLoS Blogs, o BioMed Central, o Hindawi Publishing Corporation, o Nature Publishing Group, o Massachusetts Institute of Technology Libraries, o Science 3.0 e o Personal Genome Project.

Nesta monta, com fulcro nas mais vanguardistas opiniões acerca do que se convencionou chamar de “Novos Direitos de Autor” – na era do remix, do compartilhamento, do fair use –, várias são as propostas de reforma dos conceitos e das legislações autorais e vários são os críticos à estrutura monopolista que o sistema do tradicional copyright advoga. Contudo, a despeito de qualquer ação oficial, como é norte do Direito moderno, enquanto fato social, a própria sociedade já fez valer seus anseios, seja através da ruptura dos dogmas, até então intransponíveis, seja com a conscientização coletiva da necessidade de adoção de práticas sui generis – porém lícitas – de se usar com maior liberdade um bem que para o homem é parte de sua raiz enquanto civilização, ainda que consubstanciada numa mera expressão.

Contudo, urge salientar que o mote filosófico acerca do uso legal de obras alheias sem autorização, mesmo não vinculadas às novas práticas abarcadas pelos novos media, denota, há tempos alhures, prática cogente nas diversas legislações modernas, a exemplo da Portuguesa, para a qual são lícitas, mesmo quando sem consentimento do autor, as seguintes utilizações:

  1.  Reprodução pelos meios de comunicação social, para fins de informação, de discursos, alocuções e conferências pronunciadas em público, desde que não entrem nas reservas legais, por extrato ou em forma de resumo;
  2. Seleção regular de artigos da imprensa periódica, sob forma de revista de imprensa;
  3. Fixação, reprodução e comunicação pública, por quaisquer meios, de curtos fragmentos de obras literárias ou artísticas, quando a sua inclusão em relatos de acontecimentos de atualidade for justificada pelo fim de informação prosseguido;
  4. Reprodução, no todo ou em parte, pela fotografia ou processo análogo, de uma obra que tenha sido previamente tornada acessível ao público, desde que tal reprodução seja realizada por uma biblioteca pública, um centro de documentação não comercial ou uma instituição científica e que essa reprodução e o respectivo número de exemplares se não destinem ao público e se limitem às necessidades das atividades próprias dessas instituições;
  5. Reprodução parcial, pelos processos enumerados acima, nos estabelecimentos de ensino, contando que essa reprodução e respectivo número de exemplares se destinem exclusivamente aos fins do ensino nesses mesmos estabelecimentos;
  6. Inserção de citações ou resumos de obras alheias, quaisquer que sejam o seu gênero e natureza, em apoio das próprias doutrinas ou com fins de crítica, discussão ou ensino;
  7. Inclusão de peças curtas ou fragmentos de obras alheias em obras próprias destinadas ao ensino;
  8. Execução de hinos ou de cantos patrióticos oficialmente adaptados e de obras de caráter exclusivamente religioso durante os atos de culto ou as práticas religiosas;
  9. Reprodução de artigos de atualidade, de discussão econômica, política ou religiosa, se não tiver sido expressamente reservada.

Um bom exemplo desse fair use é encontrado na base filosófica da chamada Ciência Aberta – ao termo, vide Gustavo Cardoso et. alii. (2012) –, definida por como um verdadeiro “movimento social”, estruturado enquanto alternativa à apropriação da produção intelectual e distribuição de informação, tradicionalmente “privatizada”.

Na gênese da dimensão constituinte da Ciência Aberta – nomeada Open Science – estão o Open Source, o Open Data e o Open Access, partes de um mesmo contexto que, tudo leva a crer, antecedem o Tout Court Science.

É apenas o (re)início de mais uma (r)evolução!

5. Considerações Finais

Diante dos construtos ora apresentados, emerge a conclusão de que as práticas educativas ilustradas alhures nada mais acresceram ou se diferenciaram, por exemplo, de teorias vygotskyanas de construção do saber, se não pela Virtualização – ao termo, vide Pierre Lévy (1996) –, no sentido mesmo de “potencialização”, com evidente possibilidade de convergência entre a teoria sócio-cultural de Lev Vygotsky e o construtivismo construcionista de Seymour Papert, outrora contextualizado por Carlos Nogueira Fino (2004).

Torna-se, também, evidente a compreensão de que a educação passiva, tão bem definida por Paulo Freire como “educação bancária”, não só não encontra guarida na atualidade, como dela se mostra absolutamente repelida, sobretudo diante de uma nova midiatização da informação e do próprio saber, então refinada numa nova prática educativa nomeada de Educação Aberta/Open Education e fulcrada em elementos dos REA.

Nos postulados da OpenCourseWare Consortium – comunidade mundial que reúne instituições de ensino superior e organizações associadas com o objetivo de fazer avançar as bases do Open Education e seu impacto na educação global, dentre elas: African Virtual University, China Open Resources for Education, Fundação Getúlio Vargas, Japan OCW Consortium, Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, Korea OCW Consortium, Massachusetts Institute of Technology, Netease Information Technology, Open University Netherlands, Taiwan OpenCourseWare Consortium, Tecnológico de Monterrey, TU Delft, Tufts University, UNIVERSIA, Universidad Politécnica Madrid, University of California e University of Michigan –, a Educação Aberta é caracterizada pelo compartilhamento universal, com a redução de barreiras jurídicas e tecnológicas aos bens educacionais, através do acesso irrestrito a plataformas, ferramentas e recursos usados nos processos de ensino-aprendizagem.

Assim, rematando e remetendo a uma “velha-moderna” questão – quais interpretações às leis autorais podem (devem) ser dadas, para adequá-las aos Recursos Educacionais Abertos? – urge comentar que, a despeito das enormes mudanças, algumas das quais aqui reportadas, o próprio corpo legislativo faculta autonomia aos criadores (titulares de Direitos de Autor) para agirem conforme seus desejos de maior proteção – all right reserved – ou liberalismo total, consoante as já difundidas licenças “criativas”; é a resposta social à adequação das regras aos novos contextos: prova inequívoca do dinamismo do Direito atual.

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