Explicando o Decreto sobre REA de São Paulo e suas implições legais e práticas

Por Carolina Rossini, Projeto Recursos Educacionais Abertos (REA) – Brasil

O projeto REA vem trabalhando desde 2008 para transformar a política pública de acesso a recursos educacionais financiados com orçamento público. Por isso, comemoramos os passos dados pelo Deputado Federal Paulo Teixeira, pelo Secretário de Educação de São Paulo, Alexandre Schneider, e o atual trabalho do Deputado estadual Simão Pedro nessa mesma direção. Todos eles, com apoio do Projeto REA, propuseram ou estão trabalhando legislação que incentiva REA e/ou adotaram a causa REA como parte de suas políticas públicas e na distribuição de recursos educacionais financiados por suas pastas.

Neste pequeno ensaio focaremos no Decreto 52.681 de 26 de Setembro de 2011 , que dispõe sobre o licenciamento obrigatório das obras intelectuais produzidas com objetivos educacionais, pedagógicos e afins, no âmbito da rede pública municipal de ensino. Primeiramente, comentamos cada um de seus artigos. Em seguida focamos nossa análise na licença Creative Commons adequada à linguagem do projeto e, por fim, apontamos outros recursos educacionais abertos com os quais os recursos educacionais desenvolvidos pela Secretaria Municipal de Educação (SME) de São Paulo seriam compatíveis para fins de remix ou outras formas de desenvolvimento de novos REA.

Para lembrar, recursos educacionais abertos são materiais de ensino, aprendizado e pesquisa, publicados e distribuídos em qualquer suporte ou mídia, que estejam sob domínio público ou licenciados de maneira aberta, permitindo que sejam utilizados ou adaptados por terceiros. O uso de formatos técnicos abertos, como o software livre, facilita o acesso e o reuso potencial dos recursos publicados digitalmente. Recursos Educacionais Abertos podem incluir cursos completos, partes de cursos, módulos, livros didáticos, artigos de pesquisa, vídeos, testes, software, e qualquer outra ferramenta, material ou técnica, que possa apoiar o acesso ao conhecimento.

Objetos da aplicação do Decreto: Da leitura dos artigos 1 e 2 do decreto, compreende-se que todo e qualquer recurso e materiais com “objetivos educacionais, pedagógicos e afins” (i) produzido diretamente pela SME, o que inclui os trabalhos de seus funcionários públicos quando no exercício de suas funções, ou (ii) resultados de todo e qualquer tipo de relação contratual estabelecida pela SME para produção de tais materiais (consultores, resultantes de licitações, ou outras formas de contratação e compra de materiais didáticos, pedagógicos etc.) deverão ser licenciados abertamente e por isso serem considerados recursos educacionais abertos.

Alcance da definição: Uma série de exemplos são citados no artigo primeiro, mas é importante apontar que tal lista não é taxativa, mas sim exemplificativa. Desta forma serão exemplos de REA, na forma do Decreto, “ livros e materiais didáticos, orientações curriculares e manuais de orientação para o programa de alimentação escolar”. Mas não somente esses. Todo e qualquer material produzido nas formas (i) e (ii) acima e que tiverem objetivos educacionais, pedagógicos e afins deverão ser REA.

Para simplificar, daqui em diante, apelidaremos os objetos da aplicação do Decreto, tendo em vista o alcance dessa definição, como “REA-SMESP”.

Opção e gestão tecnológica para permitir acesso público:  Por sua vez, o artigo 1º determina que os REA-SMESP deverão ser depositados, publicados e disponibilizados a acesso público, ou seja, por todo e qualquer indivíduo, instituição pública ou privada, ONG, ou qualquer outro ente social, por meio do sítio eletrônico  (site) daquela Secretaria no Portal da Prefeitura do Município de São Paulo. O Site da SME funcionaria, desta forma, como um repositório de recursos educacionais abertos, como os encontrados aqui.

O Decreto, entretanto não esclarece questões como a adoção ou não de software livre como base de tal repositório ou se este repositório permitirá ações como “colheitas automatizadas” (harvesting) ou busca indexada, ou se o mesmo deverá seguir padrões de interoperabilidade internacionais, permitindo assim a comunicação técnica de tal repositório com outros repositórios e plataformas REA. Tampouco o Decreto aponta para a necessidade de contrução de metadados REA adequados para que os materiais sejam encontráveis por ferramentas de busca. Esperamos que tais relevantes detalhes sejam determinados em um plano de execução da gestão tecnológica do Decreto.

Opcão pelo Licenciamento Aberto: Ao final do Artigo 1 º, o Decreto estabelece os usos que serão permitidos, determinando assim a forma de licenciamento pela qual a SME-SP disponibilizara tais REA. Desta forma, o artigo  1º, permite a  “(…)livre utilização, a cópia, a distribuição e a transmissão” e, adicionalmente, em seu Parágrafo Único, a criação de obras derivadas, como traduções, remixes, colagens, etc. Ver definições específicas no Art. 5º da Lei de Direito Autoral Brasileira.

Em seguida, o mesmo artigo 1º. aponta para as restricões e condicões sob as quais os usuários deverão agir ao copiar, distribuir, transmitir ou criar obras dereivadas:

“I – preservação do direito de atribuição ao autor;

II – utilização para fins não comerciais.

Parágrafo único. A licença obrigatória de que trata o “caput” deste artigo compreende o direito de criação de obras derivadas, desde que sejam licenciadas sob a mesma licença da obra original.”

Qual licença a ser adotada? Apesar do Decreto não apontar para uma opcão Licença Livre específica, não ha como negar a perfeita adequação das licenças livres do Creative Commons (“CC”), especificamente, da CC-BY-NC-SA  ou seja, Creative Commons atribuição, uso não comercial, compartilhe sob a mesma licença.

Opção por Creative Commons –  um padrão global: As licenças CC são as licenças de conteúdo aberto mais frequentemente usadas no mundo. Foram adaptadas do ponto de vista linguístico e legal para mais de 70 jurisdições locais em todo o mundo. Entidades governamentais, universidades e bibliotecas à volta do globo usam as licenças CC para possibilitar o acesso e aumentar o impacto dos seus recursos educativos. Por exemplo, a European Schoolnet, um grupo de 31 Ministérios da Educação de países da União Europeia, que disponibiliza recursos educativos sob CC (naquele caso CC-BY, ou seja, apenas atribuição), The OpenCourseWare Consortium, uma colaboração de mais de 200 universidades em todo o mundo, fundada pelo MIT, que disponibiliza cursos de alta qualidade sob a mesma licença CC-BY-NC-SA, a eIFL.net, e tantos outros projetos no Brasil e no Mundo! Ver listas de alguns projetos aqui  e aqui .

A adoção de licenças Creative Commons tem o potencial de maximizar os impactos gerados por financiamentos públicos em materiais educacionais. Quando recursos educacionais são licenciados com licenças CC, eles tornam-se documentos vivos que podem ser expandidos e melhorados não só pelos seus autores, mas também por colegas professores, estudantes, ou qualquer um de nós. Veja algumas histórias de sucesso de adoção de Creative Commons para REA aqui.

Mas o que significa a licença CC-BY-NC-SA e quais suas implicações práticas para os usuários dos REA-SMESP?

A opção por CC-BY-NC-SA significa que os usuários daqueles REA-SMESP deverão, minimamente, ao fazer algum uso da obra (cópia, distribuição, transmissão e criação de obras derivadas):

(a) citar a SME como fonte e detentora dos direitos autorais, citar o nome do respectivo autor individual como detentor dos direitos morais quando este nome estiver disponível no site da SME, preservar e apontar para o link da localização original e oficial daquele recurso educacional;

(b) não utilizar aquele REA-SMESP para usos comerciais. Veja aqui estudo do Creative Commons sob o significado da cláusula “uso não comercial”;

(c) ao produzir obra derivada, licenciar tal obra sob a mesma licença CC-BY-NC-SA. Ou seja, o uso de um REA-SMESP controla a forma de licenciamento a ser adotada pelos autores das obras derivadas e subsequentes.

Com quais materiais os usuários poderão remixar os REA-SMESP?

A licença CC-BY-NC-SA é uma das mais restritivas do grupo de 6 licenças disponibilizadas pelo Creative Commons. Em função de tais restrições você somente poderá remixar com REA-SMESP obras livres e REAs que já sejam CC-BY ou CC-BY-NC ou CC-BY-SA, entretanto a obra resultante devera ser, obrigatoriamente licenciada por CC-BY-NC-SA, pois a licença mais restritiva controla o resultado final.  Mas não poderá utilizar materiais licenciados sob CC-BY-NC-ND para remixes com os da REA-SMESP.

Mas projetos que já são licenciados por licenças mais flexíveis como CC-BY ou CC-BY-NC ou CC-SA não poderão utilizar os REA-SMESP ou tampouco integrá-los em seus repositórios, caso tais repositórios tenham política de licenciamento unificada sob tais licenças mais flexíveis.

Por exemplo, os REA-SMESP poderão ser remixados com REA vindos do MITOpenCourseware, do Connexions, e mesmo materiais do Wikieducator. Mas, no caso destes dois últimos, o contrario não é verdadeiro – o que pode gerar uma sensação de injustiça ou falta de reciprocidade para com aqueles usuários que gostariam de criar alguma obra via Connexions (plataforma colaborativa de criação e compartilhamento de conteúdo, que tem o Brasil entre os 10 paises que mais a utilizam) ou Wikieducator.

Veja aqui tabela dinâmica de interoperabilidade das licenças do Creative Commons.

Conclusão

Com este Decreto, um dos  primeiros do tipo no mundo (veja iniciativas semelhantes aqui e aqui), a Prefeitura de São Paulo, por sua SME, inova ao sair da lógica de “todos os direitos reservados”, para uma lógica de “alguns direitos reservados”, respeitando o autor de tais obras ao garantir a atribuição e o devido pagamento quando  de sua contratação inicial (salário no caso dos funcionários públicos e pagamentos por compras ou prestações de serviços no caso de contratações) e determinando quais os usos permitidos e quais as restrições e condições que modelam tal uso. A SME de São Paulo inova e junta-se assim ao movimento global de Educação Aberta, efetivando direitos constitucionais Brasileiros!

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