Texto Sérgio Branco | Fonte Brasil Post | Licença Todos os direitos reservados
Anualmente, em primeiro de janeiro, o mundo comemora o dia do domínio público. A data é importante porque marca o momento em que obras, antes protegidas por direitos autorais, podem ser usadas independentemente de autorização ou pagamento. Neste ano, entraram em domínio público as obras de Antoine de Saint-Exupéry, Edvard Munch, Glenn Miller e Eliseu Visconti, entre outros.
Na prática, o que isso significa? O que pode ser feito com músicas, livros, filmes e pinturas que ingressam em domínio público? Com o término dos direitos econômicos, qualquer pessoa fica livre para:
a) usar a obra original, inclusive com fins lucrativos;
b) modificar a obra original, fazendo adaptação, tradução, remix, de modo quase ilimitado, também com fins lucrativos, se assim desejar.
É importante observar que o nome do autor da obra que entra em domínio público precisa sempre ser mencionado, mesmo que tenha havido grande modificação em seu trabalho. Por isso, se você decidir adaptar um livro de Shakespeare ou de Machado de Assis para qualquer mídia ou formato, pode fazer sem medo, mas precisa informar o nome do autor da original que você está adaptando.
E o ingresso em domínio público das obras de Glenn Miller, Exupéry, Munch e Visconti, entre outros, vale no mundo inteiro? Não. Cada país precisa decidir como contar o prazo de proteção. Em razão de tratados internacionais, o prazo mínimo geral é de 50 anos a partir da morte do autor. O Brasil adotou o prazo de vida do autor mais 70 anos para todas as modalidades, menos fotografias e obras audiovisuais, cujo prazo de proteção também é de 70 anos, mas contados da divulgação da obra (ou seja, fotos e filmes divulgados até 1944 também entraram em domínio público no Brasil em 2015).
Por isso, é verdade que os trabalhos dos autores mencionados no início do texto ingressaram em domínio público no Brasil, na União Europeia, na Argentina, na Austrália e em todos os países que adotam a regra dos 70 anos. Contudo, há exceções. Na Colômbia, que prevê proteção por 80 anos após a morte do autor, a obra pode entrar em domínio público só em 2025, dependendo da regra aplicável a obras estrangeiras. A mesma lógica se aplica à Costa do Marfim (prazo de 99 anos depois que o autor morre) e ao México (vida do autor e mais 100 longuíssimos anos).
O caso mais polêmico deste ano é o ingresso em domínio público do “O Pequeno Príncipe”, um dos maiores fenômenos editoriais de todos os tempos. Como se pode perceber, o esgotamento dos direitos econômicos sobre a obra depende do lugar em que a proteção é reclamada. Em países que protegem direitos autorais por menos de 70 anos (Canadá e Coreia do Sul, por exemplo), o livro já não está mais protegido pelo menos desde 1995. Por outro lado, em países como Colômbia e México, talvez só daqui a alguns anos. Pela lei brasileira, o livro está em domínio público porque o Brasil aplica a todas as obras do mundo o prazo de sua própria lei. Assim, não importa a origem da obra, o prazo aplicado será sempre o de setenta anos após a morte do autor. Essa regra é permitida nos termos dos acordos internacionais e se encontra expressa na lei brasileira de direitos autorais (lei 9.610/98, art. 2º).
Na França, contudo, existem prazos de prorrogação de direitos de autor por conta das guerras mundiais do século XX. Como as obras intelectuais não puderam circular adequadamente nos períodos de conflito, o legislador decidiu aumentar o prazo de proteção em 6 anos e 152 dias para compensar os danos da Primeira Guerra Mundial e em 8 anos e 120 dias para os da Segunda. Além disso, foram conferidos 30 anos extras para o caso de o autor ter morrido em combate. Por isso, caberá ao intérprete da lei francesa definir qual regra incide no caso. Não será a primeira vez que a corte da França precisará analisar a questão. Por conta das prorrogações de guerra, nos anos 1990 o poder judiciário francês teve que decidir se os quadros de Monet ainda estavam protegidos. De toda forma, como as prorrogações valem apenas na França, não devem causar qualquer impacto no Brasil.
Para o ano que vem, esperem ainda mais polêmica. Em 2015, completa-se o prazo de 70 anos da morte de Hitler. Por isso, em 01 de janeiro de 2016 ingressa em domínio público o “Mein Kampf” (além de todas as pinturas de Hitler – de talento duvidoso, segundo os críticos). Por enquanto, os direitos autorais sobre o livro pertencem ao governo alemão, que se empenha em proibir qualquer reprodução da obra. Claro que em alguns países, a obra já não está mais protegida, mas a grande questão é o ingresso em domínio público na Europa. A partir do ano que vem, quando for possível a apropriação do “Mein Kempf” inclusive por grupos extremistas europeus, estaremos diante de um interessante e raríssimo caso em que o domínio público promove o acesso lícito a uma obra indesejada. Neste momento em que se discute tanto liberdade de expressão, o que não vai faltar é assunto.
Sérgio Branco é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e doutor em Direito Civil pela UERJ.