Bianca Santana

É diretora de educação do Instituto Educadigital, membro da comunidade REA-Brasil e da Casa de Cultura Digital. Entrevista dada ao Amigos da Escola em 02/2011.


Como o potencial informacional, interativo e colaborativo das redes pode ajudar no processo de educar com valores?

A colaboração e a interação são valores em si.O pressuposto freireano de democratizar a educação já apresenta tais valores como essenciais à educação. Com a internet, uma rede de arquitetura distribuída, em que cada nó é receptor e potencial produtor (de informação, conhecimento, cultura), aumentam nossas possibilidades de realizar açoes que concretizam tais valores.

O educador que quisesse, por exemplo, produzir um livro coletivo com seus educandos antes da internet poderia fazê-lo. Mas seria mais complicado. Era ainda mais complicada a colaboração entre instituicoes de regiões ou países diferentes. Com a internet, existem ferramenta superbacanas para colaboração. Além de wikis e blogs, há ferramentas específicas para a construção coletiva de livros, por exemplo. Com a vantagem de que a produção daquela turma pode agora estar disponível para o mundo todo. Além de interagirem entre si e com o professor, aqueles alunos podem colaborar e interagir com o mundo todo; participando da construção coletiva de conhecimento e provando como há mais espaço para a diversidade cultural agora.

Como a ideia de Recursos Educacionais Abertos (REA) caminha rumo a uma educação mais cidadã?

A ideia de REA parte do princípio de que o conhecimento é um bem da humanidade e deve, portanto, estar acessível a toda a humanidade. A produção acadêmica tem esse pressuposto. Ninguém escreve uma tese sozinho, como um iluminado que cria tudo, a partir do nada. Todos temos referências e autores com os quais dialogar, e a partir desse diálogo colocamos mais um tijolinho nesse mundo de conhecimento. Se o meu tijolinho estiver publicado na Internet sob uma licença livre, e nao só trancado numa biblioteca, aumento minhas chances de interacao, colaboracao e dialogo com o resto do mundo. Também aumento minhas chances de ser adotado como referencia naquele tópico em partes do mundo que nunca esperaria. Os melhores professores têm a cultura de compartilhar roteiros de aulas e atividades com os colegas. Ele pode melhorar ainda mais seu repertório e contribui mais com a coletividade se essa troca for com mais pessoas. Mas e se o que estiver na Internet estiver restrito com um copyright, negando o direito de as pessoas utilizarem, traduzirem e remixarem aquele conteudo, distribuirem pra seus alunos, por exemplo? A troca nao sera efetiva. As restriçoes vao impedir o esforço criativo e a livre circulaçao do material, limitando acoes inovadoras. Portanto é importante a adoçao de licenças de uso mais flexíveis, que em vez de restringir todos os direitos daquela produção, libere alguns usos livres. As licenças Creative Commons, por exemplo, tratam de reservar alguns direitos, em vez de todos. É o autor que decide que usos podem ser feitos de sua obra. O formato de publicação também pode ser um problema. Não adianta eu publicar meu material na rede se as pessoas não conseguirem abrir o arquivo ou mesmo encontrá-lo (lembrem que as ferramentas de busca sao mais efetivas quanto mais links entrarem e sairem do material). Todo mundo ja passou pela experiencia de abrir um arquivo de computador e, em vez de um texto, encontrar caracteres indecifráveis. É essencial publicar arquivos em formatos abertos, que permitam diversas utilizações, links, indexação e integração digital. A definição de REA formulada pela Unesco em 2002 resume tudo isso ao afirmar que recursos educacionais abertos lidam com a provisão aberta de recursos educacionais, possibilitada pelas tecnologias de informação e comunicação, para consulta, uso, reuso e adaptação. Como lembra a Declaracao da Cidade do Cabo, “esse movimento emergente de REA combina a tradição de partilha de boas ideias com colegas educadores e da cultura da Internet, marcada pela colaboração e interatividade. Esta metodologia de educação é construída sobre a crença de que todos devem ter a liberdade de usar, personalizar, melhorar e redistribuir os recursos educacionais, sem restrições. Educadores, estudantes e outras pessoas que partilham esta crença estão unindo-se em um esforço mundial para tornar a educação mais acessível e mais eficaz”.

A educação é responsabilidade de todos. Ações como o REA podem ajudar a consolidar essa visão em nossa sociedade?

Certamente! Uma das principais discussões de REA trata de deixar o conteúdo disponível para todas as pessoas: as que estão dentro e fora das escolas. Além de facilitarem a aprendizagem de todos, os REA permitem que qualquer pessoa contribua com o conteúdo a ser utilizados por outros, dentro e fora das escolas. Na Índia, por exemplo, um pai de aluno estava descontente com os livros de física utilizados por seu filho e decidiu produzir outro material, utilizando a plataforma Connexions. Tanta gente passou a utilizar o livro, nao só na India, mas nos EUA, que ele chegou a ser adotado oficialmente pelo governo americano para sua rede pública! Exemplos assim são cada vez mais recorrentes no mundo REA. Outros livros produzidos assim, de maneira descentralizada e colaborativa (chamados livros didaticos abertos ou “open textbooks”), foram comprados pelo governo da California para serem utilizados nas escolas públicas.

Em qual estágio está a discussão sobre Recursos Educacionais Abertos (REA) no Brasil?

A conversa começou por aqui em 2008, trazida pela Carolina Rossini, via o projeto REA-Br: Desafios e Perspectivas, com apoioda FGV em Sao Paulo e da Fundacao “Open Society Institute”. Desde 2010, o projeto acontece via Casa de Cultura Digital, sendo coordenado por mim e pela Carol. Durante esses anos, focamos na construção e expansão de aliancas institucionais e políticas e de uma comunidade de suporte à temática REA com a qual debatemos tópicos nacionais e internacionais, ajudamos em projetos, e discutimos politicas publicas para adocao e incentivo aos REA como forma de democratizacao da educacao e inclusão das TICs. Há cerca de 300 pessoas participando da comunidade online REA via lista de emails e Facebook, sem contar as inúmeras que seguem nos via Twitter e blog rea.net.br. Desta comunidade, há projetos interessantes, como o Mais Educacional, a Editora Hedra, o grupo de Estudos Educar da Cultura Digital, o Coletivo Puraqué e uma série de outros projetos executados por professores em suas escolas que o Projeto REA-Br tenta dar suporte, principalmente no uso de licenças abertas e implementação de metodologias colaborativas. Via projeto REA-Br também mantemos relação com diversos governos e instituições brasileiras e internacionais, incentivando açoes de REA: desde o colégio Dante Alighieri, em São Paulo, e a Secretaria Municipal de Educação, até a Câmara Federal. O Deputado Paulo Teixeira, atual líder do PT da Câmara, tem grande interesse e conhecimento no tema e já mostrou vontade de propor algum incentivo legal à produção de REA. Temos também conversas com o MEC e o governos estaduais que devem resultar em projetos interessantes. Além da atuaçao no Brasil, participamos de fóruns internacionais sobre os REA, lá fora chamados de “Open Educational Resources”. Temos acompanhado de perto e garantido suporte institucional de organizacoes como a UNESCO, projetos da África do Sul, de países europeus como a Holanda e Polônia, da Austrália e do governo Obama acerca dos REA. Também tentamos trabalhar com editoras para pensar o papel dessas empresas em um momento em que o preço do livro didatico é impeditivo para muitos alunos. Desta forma temos discutido com algumas modelos de negócio alternativos e que gerem livros didaticos abertos ou versões digitais mais acessíveis e abertas em diferentes formatos. Também promovemos, desde 2008, muitos encontros, atividades educativas, palestras e conferências sobre REA no Brasil todo e também participamos de encontros e conferencias internacionais. Participamos, inclusive da CONAE, de eventos na Apple, na Campus Party, no Internet Governance Forum e outros pelo Brasil. Na CONAE conversamos com quase 2000 professores! Isso tudo fez com que a temática REA esteja presente em muitas rodas de debate sobre inovação na educação. REA era um conceito desconhecido em 2008 e isso mudou. Os debates com mais fundo de politica publica também significaram uma aproximação com o governo para repensar como o MEC compra materiais educacionais. Um artigo longo foi publicado via projeto REA e lá mais de 10 projetos nacionais foram analisados e recomendacoes elaboradas. Estamos trabalhando com muitos desses projetos para ajuda-los a melhorar o uso de padrões técnicos e legais, para que assim cumpram a missão sob a qual foram criados.

Você acredita que, com todas as mudanças estimuladas pelos caminhos do digital, os valores também estão mudando?

Nao acredito que o digital mude valores. Mas acredito que os valores da sociedade estejam mudando. E o digital, como parte da sociedade, evidencia estas mudanças. O compartilhamento, a colaboração e a inovação sao valores cada vez mais evidentes em todas as esferas da sociedade que aparecem mais evidentemente pelos caminhos do digital.

Como é esse educador que deve estar preparado para lidar com as demandas de alunos que já nasceram sob a égide do digital?

Ele precisa estar preparado para partilhar e colaborar, ter um espírito flexivel para aprender constantemente e também para estar apto a velocidade do digital. O aluno pode ter mais conhecimento de produção de vídeo ou das ultimas ferramentas disponíveis na web. Mas certamente ele precisa de orientação para a utilização desse conhecimento e da validação dos mesmos como ferramentas de educação. Se o professor aproveitar o potencial deste aluno, reconhecendo e aproveitando o que ele pode oferecer, reconhecendo o aluno como par na construção do conhecimento, ele estará preparado para estes novos tempos. E com o digital, este professor também não esta mais sozinho. REA também incluem o compartilhamento de metodologias de ensino e recursos complementares, como exames de provas, exercícios etc. O professor tem a chance, assim, de dialogar com outros do Brasil, de países de língua portuguesa e até de qualquer parte do mundo pra trocar experiências, sabendo avaliar melhor o que pode ou não dar certo ou ser utilizado em seu contexto.

SUGESTÕES DE LEITURAS:

1. Comunidade de Aprendizagem: A educação em função do desenvolvimento local e da aprendizagem, de Rosa María Torres. Em: http://www.fronesis.org/immagen/rmt/documentosrmt/Comunidade_de_Aprendizagem.pdf

2. Cultura Livre, de Lawrence Lessig. Disponível em: http://tramauniversitario.uol.com.br/compartilhe/cultura_livre.jsp

3. The Wealth of Networks, de Yochai Benkler em : http://cyber.law.harvard.edu/wealth_of_networks/index.php?title=Download_PDFs_of_the_book

4. PRETTO, N. L. e BONILLA, M. H. S. Construindo redes colaborativas para a educação. Revista Fonte, da Prodemge/BH, . |ler na tela |arquivo fonte (odt) | pdf | link original da publicação

5. PRETTO, N. L., PINTO, Claudio da Costa – Tecnologias e Novas Educações. Revista Brasileira de Educação. , v.11, p.19 – 30, 2006. | ler na tela | arquivo fonte, em odt | link original da publicação | pdf |

6. CASTELLS. Manuel. A sociedade em rede. São Paulo, Paz e Terra, 1999.

7. PRETTO, Nelson de Luca. Cultura digital e educação: redes já! In PRETO, N e SILVEIRA, S. A. (org). Além das redes de colaboração: internet, diversidade cultural e tecnologias do poder. Salvador, Edufba, 2008. Disponível em: http://rn.softwarelivre.org/alemdasredes/2008/08/26/lancado-e- disponibilizado-o-livro-do-alem-das-redes-de-colaboracao/.

8. FLECHA, Ramon. ELBOJ, Carmen. La Educación de Personas Adultas en la sociedad de la información. Revista de Educación XXI, 2000. Disponível em: http://www.uned.es/educacionXX1/pdfs/03-05.pdf

9. LEMOS, André. Ciber-cultura-remix. Artigo apresentado no seminário “Sentidos e Processos” dentro da mostra Cinético Digital’, no Centro Itaú Cultural, 2005. Disponível em: www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/andrelemos/remix.pdf

10. Silveira, S. A. Exclusão digital: a miséria na era da informação. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.

11. Declaracao Internacional sobre Recursos Educacionais Abertos: Declaração de Cidade do Cabo para Educação Aberta

12. Greenpaper OER Brazil: Livro Verde Sobre Recursos Educacionais Abertos: Desafios e Perspectivas Brasileiros, de Carolina Rossini (em inglês) Sumário Executivo (Português) – http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1549922

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