Carolina Rossini

Carolina Rossini é advogada, consultora e professora de Propriedade Intelectual e Direito da Internet, tendo ministrado palestras no Brasil e no exterior. Conduz trabalhos pró-bono para instituições que almejam desenvolver estratégias em torno dos “commons”, inovação aberta e acesso ao conhecimento. Fundou e coordena o Projeto REA-Br desde 2008. Em 2011, juntou-se ao GPOPAI-USP como senior fellow com foco em política de inovação e acesso ao conhecimento.

Entrevista concedida em 2009 por Carolina Rossini, fundadora e coordenadora do Projeto REA Brasil ao Gpopai (Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação).


Gpopai: Como você avalia o uso atual de recursos educacionais abertos no Brasil?

Carolina Rossini: Para avaliar a existência, desenvolvimento e disponibilização de recursos educacionais abertos uso da seguinte estrutura: primeiramente penso nas diretrizes trazidas pela Declaração de Educação Aberta da Cidade do Cabo, como uma macro-estrutura de definição de educação aberta. Enquanto que, como um segundo passo de análise, e ao observar projetos específicos, desconstruo a missão e as elementos formadores de um certo projeto e comparo tais elementos com a definição de recursos educacionais abertos.

A Declaração da Cidade do Cabo traz e diretrizes fundamentais:

(a) Encorajar a larga participação social na criação, utilização, adaptação e melhoria dos recursos educacionais abertos, abraçar práticas educativas em torno da colaboração, da descoberta e da criação de conhecimento;

(b) Buscar a interoperabilidade legal e técnica dos recursos desenvolvidos. Determinando que os recursos educacionais abertos devem ser livremente compartilhados por meio de licenças livres que facilitam o uso, revisão, tradução, melhoria e compartilhamento por qualquer um. Os recursos devem ser publicados em formatos que facilitem tanto a utilização e edição, e adaptáveis a diferentes plataformas tecnológicas

(c) Em terceiro lugar, governos, conselhos escolares, faculdades e universidades devem fazer da Educação Aberta uma alta prioridade. Idealmente, recursos educacionais financiados pelos contribuintes devem ser abertos. Acreditação e os processos de adoção devem dar preferência a recursos educacionais abertos.

A aplicação desta estrutura a analise dos recursos educacionais disponibilizados pelos governos federal e estaduais e por entidades privadas no Brasil nos leva a concluir que muito já foi feito em relação a encorajar a participação, criação e algo esta sendo feito em relação a encorajar a colaboração e compartilhamento de conhecimento e recursos educacionais. Os mais de 10 projetos analisados no green-paper – como o Portal do Professor, o RIVED, o Projeto Folhas e Livro Público, são a prova disso. Entretanto, raríssimos são os projetos que buscam interoperabilidade técnica e legal – em termos de standards (padrões) técnicos de interoperabilidade de objetos educacionais e plataformas de disponibilização de recursos diferentes objetos e licenças de direito autoral e software abertas que permitem a congregação de recursos, o que mostra claramente que a falta de uma política única ou uma melhor interlocução entre entes (principalmente públicos) ao redor da disponibilização de recursos educacionais abertos pode significar a ineficiência e a não utilização de recursos, ou mesmo “morte” de projetos nos quais o governo investiu milhões e milhões de reais e muito tempo. Desta forma, creio que o Brasil esta a caminho de satisfazer a primeira diretriz, mas estamos longe de realizar as indicações da segunda e terceira diretriz.

Agora, quando dissecamos projetos que tem como missão a ampla e inclusiva disponibilização de recursos educacionais para a população brasileira o problema de não interoperabilidade e falta de uma posição clara dos entes públicos é ainda mais clara. Segundo a definição mais amplamente adotada, recursos educacionais abertos significa a provisão recursos educacionais – que podem ser de simples unidades de conhecimento como fotos, a capítulos de livro, softwares educacionais, jogos, ou mesmo um curso completo e as metodologias didáticas de aplicação e uso de tais recursos – permitida e promovida pelas tecnologias da comunicação e informação, para consulta, uso, adaptação por toda comunidade de usuários possíveis, não somente aqueles vinculados a uma educação formal. Este conceito aponta claramente para três elementos de design de um recurso educacional que se propõe a ser aberto: o conteúdo, a plataforma e a administração dos direitos de propriedade intelectual que recaem sobre um certo recurso de forma que o detentor dos direitos autorais ou de software digam de forma clara e de antemão quais os usos autorizados. Como o próprio conceito traz esses usos dizem respeito a possibilidades de – utilizando as palavras da Lei Brasileira de Direito Autorais – reprodução, distribuição e produção de obras derivadas (como traduções ou adaptações para diferentes plataformas tecnológicas), sempre respeitando os direitos morais do autor. Entretanto o que se vê nos projetos Brasileiros é um design precário e incompleto na grande maioria dos projetos avaliados.

Talvez uma das primeiras coisas que deve ser feita em relação a isso é uma ação de mão dupla de baixo para cima e de cima para baixo. Numa ação de baixo para cima, ações de educação sobre os uma forma mais positiva de uso da propriedade intelectual em prol ao compartilhamento de conhecimento, direitos dos professores, alunos e bibliotecários e compreensão do que significa participar da sociedade do conhecimento. E uma ação de cima para baixo de unificação das políticas de elaboração e disponibilização de recursos educacionais.

Por fim, creio que três são as coisas para pensar e que podemos concluir em relação a isso tudo:

  1. Sistemas abertos e redes abertas podem criar novas formas de inovação/criação;
  2. Novas formas de inovação/criação podem ser ajudadas, ou prejudicadas, por políticas publicas e institucionais e
  3. Brasil está experimentando com idéias de colaboração e abertura, mas estamos somente no começo.

Gpopai: A precariedade da infra-estrutura de educação no Brasil impacta a implementação e ampla adoção de REAs pela comunidade?

Carolina Rossini: Sim e não. Claro que um amplo acesso as tecnologias da informação e comunicação permite uma mais rápida inclusão de professores e alunos na sociedade do conhecimento. Entretanto isso também só é verdade quando a metodologia de educação traz em a idéia de “trabalhar de forma conjunta”, “compartilhar conhecimento com pessoas do mundo inteiro” e “acessar recursos advindos de todo mundo”. Por isso, afirmo que devemos pensar a inclusão digital de uma forma que possibilite que interações colaborativas (indivíduos como cidadãos) e não só transações (indivíduos como consumidores) sejam possibilitadas por essa metodologia educacional de inclusão digital.

Entretanto, sabemos que o Brasil tem grande defasagem de acesso as TICs, como a Internet, e que essas defasagens são ainda mais gritantes quando quebramos os dados por camadas sociais ou regiões do Brasil, mas também sabemos que o governo possui metas agressivas de conexão da rede pública de educação. O NIC.Br publica dados sobre isso todos os anos e o IBGE também ampliou suas pesquisas para tal questão. Ou seja, muitos estão e ficarão excluídos dessa possibilidade por longo tempo ainda. Também é importante lembrar o interessante fenômeno é o papel das lanhouses em inclusão digital – mas como esse não é nosso foco, não vou me estender nisso.

Desta forma, há que se pensar em como trazer a idéia de acesso, colaboração, remix, adaptação de recursos educacionais para a sala de aula que não esta incluída digitalmente. E projetos em outras partes do mundo já mostram que isso é possível. Na Índia distribui-se livros em caixas de biscoito que chegam a mais locais que pelo próprio correio, metodologias construtivistas já trazem em seu ceio a questão da colaboração. Ou seja, desde cedo considero possível incutir em nossos jovem uma visão positiva sobre as vantagens de “aprender de forma conjunta” e “ser criativo”, “não ser passivo no recebimento de conhecimento”. Muitos chamam tal currículo de alfabetização para o digital. Ou seja, creio que a formação de indivíduos para a cultura comunitária da Internet pode e deve acontecer mesmo sem acesso imediato e constante a Internet.

Gpopai: Quais são os ganhos educacionais possibilitados pela adoção de recursos abertos?

Carolina Rossini: Creio que os ganhos são muitos, mas diversos em relação aos atores envolvidos. Uma didática mais inclusiva valoriza o professor e os alunos como atores que participam ativamente da criação, aprimoramento e adaptação do conhecimento embutido em recursos educacionais a suas necessidades locais e cotidianas, em paralelo a possibilidade de colaboração com pessoas do mundo inteiro, o que garante uma visão global da educação e do conhecimento. Ademais, gera independência do professor de escolher recursos centrais ou recursos complementares que são mais adequados a certo grupo de alunos num determinado momento, além de permitir a mais rápida produção, correção e distribuição de novas versões de recursos mais atuais e corretas.

Aqui afirmo que os “olhos” de muitos geralmente funcionam melhor que os “olhos” de poucos. E tal “mantra” já se provou verdadeiro em áreas de produção colaborativa como o software livre, ou na resolução de complexos problemas científicos via projeto Innocentive, ou pelo exemplo constantemente citado da Wikipedia.

Tais recursos também possibilitam a inclusão de uma camada da população que não tem acesso, por uma série de razões a educação formal ou de uma camada de população que gosta de estudar independentemente do local, classe, ou idade. Eles também tem acesso a tais recursos educacionais quando esses são verdadeiramente abertos. E quando utilizo a palavra “aberto” refiro-me, reafirmando o dito anteriormente, a autorização pelos detentor de direitos de propriedade intelectual de acesso, uso, adaptação e circulação de tais recursos.

Gpopai: Você vê contradições na criação de recursos educacionais fechados financiados pelo Estado (por exemplo, os materiais multimídia produzidos pela Fundação Vanzolini para a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, ou os materiais produzidos por professores que trabalham em tempo integral para uma instituição pública)?

Carolina Rossini: Certamente. Tais materiais são produzidos com base em dotação do orçamento público. E de onde vem tal orçamento? Do pagamento de impostos realizado pela maioria dos cidadãos brasileiros. O pagamento de salários de professores e servidores em tempo integral faz parte do orçamento das universidades publicas que são financiadas por “dinheiro publico” proveniente de impostos. Vale lembrar ainda que a Constituição determina que cultura e educação são direitos de todos. Desta forma, acredito que o Estado tem a obrigação de oferecer oportunidades formais (que aqui significa a inscrição formal de alunos a cursos, geralmente após um exame ou algum procedimento formal de inscrição) e informais (sem a necessidade de processos formais de inscrição) de aprendizagem, potencializando, assim, o investimento publico. Muitos questionam como medir esse “aprendizado” informal possibilitado a todos via recursos educacionais abertos…aqui tem se sugerido a realização de exames voluntários dos inscritos ou algum processo de registro.

Gpopai: Qual é a relação dos REAs com as licenças livres e com os softwares livres?

Carolina Rossini: Software livre inspirou muitos movimentos colaborativos em termos das liberdades permitidas e da possibilidade de colaboração e desenvolvimento voluntário de um bem que traz em si uma conhecimento. Ademais, software livre mostrou como possível o desenvolvimento de modelos de negócio criativos baseados em conteúdo aberto. Creio que todos temos muito a aprender com as experiências de software livre e o reconhecimento de que as capacidades estão distribuídas socialmente, e muitas vezes em locais inesperados. Entretanto, para que tais capacidades se realizem, há que se abrir a possibilidade de participação e garantir o acesso aos meios de produção desses bens portadores de conhecimento.

As licenças livres ou abertas, por sua vez, são a base essencial tanto do software livre como dos recursos educacionais abertos. As licenças do Creative Commons são licenças livres que tornaram-se “standards” legalmente aceitos e executáveis judicialmente. Por meio de tais licenças, que nada mais são que licenças voluntarias de direito autoral, resguardadas pela nossa Lei de Direitos Autorais e por tratados internacionais, o autor ou detentor dos direitos autorais resguarda alguns direitos para si e fornece de antemão a sociedade alguns de seus direitos. Por isso a frase “alguns direitos reservados”. Desta forma, quando um usuário acessa um certo conteúdo ou software licenciado por licenças livres e abertas ele já saberá o que poderá fazer com aquele conteúdo, em termos dos direitos de acesso, reprodução, distribuição e produção de obras derivadas. Para recursos educacionais abertos, de forma a garantir sua plena interoperabilidade jurídica e, desta forma, técnica, recomenda-se o uso da licença Creative Commons Atribuição, a mais permissiva das licenças CC. Entretanto, já se observa o uso da Creative Commons Atribuição – Não comercial em projetos que possuem fins lucrativos, como uma forma de proteger-se de competidores. O mais claro exemplo é o modelo de negócios aberto adotado pela inovativa Flat World Knowledge que resumidamente permite o acesso aberto e a alteração de livros online e cobra por cópias impressas (printing on demand) e alguns serviços ao redor de customização de materiais.

Gpopai: No seu Green-Paper, você recomenda que a lei de copyright seja reformada, para que sejam ampliadas e formalizadas as exceções e limitações relacionadas à educação. Qual o impacto da atual legislação sobre os REAs? Que mudanças na lei de direitos autorais facilitariam a adoção de REAs?

Carolina Rossini: Sim, é verdade, recomendo a ampliação de exceções e limitações a lei de direitos autorais para fins educacionais, não comerciais. A lei Brasileira, quando comparada a outras, como a americana, é muito restritiva. Por exemplo, escolas de cinema não podem passar filmes essenciais a seus alunos sem infringir a lei….bibliotecas ou fotocopiadoras não podem disponibilizar copias de livros raros, não impressos no Brasil ou esgotados. E assim por diante. Ha que se repensar a lei para atender os fins constitucionais de acesso a cultura e educação. Tenho muita esperança no processo atual de revisão da lei, processo que primou pela ampla participação social e representação de interesses. Há que se permitir o uso de conteúdo para fins educacionais não comerciais.

Os REA, na situação da nossa lei, servem como um “tapa-buraco”, pois se utilizam da lei para permitir, por meio de licenças autorizadas pelas lei, usos que estão previstos em lei, mas que estão centralizados na mão do autor. O autor permite que a sociedade utilize tais direitos ao vincular o conteúdo educacional que produziu a uma licença aberta e facilitar o acesso por meio de plataformas tecnológicas ou formas inovativas de distribuição. Aqui o “privado” (mesmo que financiado por dinheiro público de forma direta ou indireta) autoriza o público a utilizar aquele conhecimento embutido no recurso educacional.

Mas preciso afirmar que, mesmo com essa função imediata de “tapa-buraco” numa situação de lei restritiva como a brasileira, os REA tem uma função muito maior: a função de clarificar e fornecer segurança jurídica ao acesso e uso de recursos educacionais, ademais da função de colocar no centro do debate a questão de acesso a recursos financiados por dinheiro publico.

Gpopai: Qual sua avaliação da Conferência sobre Recursos Educacionais Abertos?

Carolina Rossini: Creio que a conferência foi um sucesso maior do que eu podia imaginar. A participação por assídua e interessada. As apresentações realmente cultivaram o debate e foram capazes de mostrar todos os lados envolvidos na questão: o lado jurídico, o lado técnico, o lado de respeito as necessidades locais, o lado da cultura colaborativa e possibilitadora de inovação. Bem… posso seguir aqui infinitamente. Creio que um dos pontos também relevantes é a abertura dos olhos da comunidade política –representantes do congresso, do Ministério da Educação e das Secretarias de Educação a uma discussão mais complexa sobre a estruturação e planejamento de projetos educacionais mais inclusivos e realmente abertos e a necessidade de garantir-se amplo acesso a recursos educacionais financiados por dinheiro publico. Creio que algo muito importante também foi o estabelecimento de canais de comunicação entre projetos nacionais e internacionais e entes do governo e da sociedade.

Gpopai: As recomendações feitas no evento também podem impactar a Conferência de Educação?

Carolina Rossini: Essa é uma de minhas grandes esperanças e creio que conseguimos uma boa abertura via representantes do congresso envolvidos em tais discussões. A Conferência Nacional de Educação, que vai ser realizada no começo de 2010 representa a culminação de um debate social amplo sobre as possíveis necessidades de reforma da educação. Encontros regionais já acontecem e estão abertos a população. Entretanto, o que se percebe é que tais debates ainda giram em torno de temas tradicionais – mas necessários. A parte de tecnologia entra por meio do debate da inclusão digital e da educação a distancia. Mas nenhum desses tópicos apresenta de forma clara o debate sobre recursos educacionais abertos e a oportunidade de revolução de acesso e metodologia que esses trazem. Espero que o trabalho realizado até agora, por meio do projeto REA Brasil e fomentado por uma comunidade que ganha cada vez mais corpo e expressão, abra um espaço oficial de debate sobre REA na CONAE e na pauta de educação Brasileira.

A versão em pdf está disponível aqui.

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