*Artigo de Bianca Santana e Priscila Gonsales publicado no Estadão em 04/06/2012.
Nem mesmo a desoladora média de 2,1 livros lidos por ano pelos brasileiros ou o fato de 75% da população do País nunca ter frequentado uma biblioteca chamam tanto a atenção na edição 2012 da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (*1) como os resultados em relação aos livros digitais.
Pela primeira vez, o estudo traz um panorama sobre o hábito de leitura de livros digitais. Um olhar pouco cuidadoso poderia apenas destacar que 46% dos entrevistados disseram que nunca ouviram falar de livros digitais (ou e-books, como enfatiza o questionário) e, consequentemente, proclamar que esse novo suporte para o livro, ou melhor, essa nova possibilidade de leitura, está ainda muito distante da realidade.
No entanto, uma análise qualitativa sobre os resultados vai trazer à tona algo que está nas entrelinhas. Se considerarmos o grupo que afirmou já ter lido livros digitais, vamos observar que 54% dos entrevistados disseram que gostaram muito da experiência, 40% gostaram pouco e 6% responderam que não gostaram.
Esse resultado é altamente positivo apesar de vir de um pequeno percentual (18%) que afirmou ter tido contato com o livro digital. Isso imediatamente nos instiga a pensar que existe sim um interesse e uma recepção até calorosa por parte de quem já experimentou. Quem não conhece, quer conhecer (25% ) e quem já usou, gostou e quer mais (34% vão ler mais livros digitais a partir de agora). Não seria esse público o que o mercado publicitário chama de early adopter (*2)?
Outro aspecto que merece uma reflexão mais aprofundada neste contexto é o conceito e de “livro digital”. Segundo a própria pesquisa: “Ao falar de livros, estamos falando de livros tradicionais, livros digitais/eletrônicos, áudio livros, digitais-daisy, livros em braile e apostilas escolares. Estamos excluindo manuais, catálogos, folhetos, revistas, gibis e jornais”.
Trazer uma definição geral para “livro” é um avanço importante em relação às pesquisas de anos anteriores, no entanto, a mesma conduta poderia ter sido adotada para buscar definir o que se entende por livros digitais e/ou eletrônicos. Quando se fala em livro digital, o que mais vem à mente são os dispositivos eletrônicos de suporte à leitura, os chamados “e-readers” (*3). Um livro ou um jornal em um leitor eletrônico, como o Kindle (*4), por exemplo, retoma a ideia de um produto fechado, como o impresso, com uma temporalidade também delimitada como a edição mais recente ou, no caso do jornal, a edição do dia.
A maioria dos e-readers oferece navegação semelhante ao manuseio do papel, remete quase à mesma sensação de ler um livro ou um jornal impresso. No entanto, é fundamental refletir sobre o conceito de livro digital que devemos considerar no contexto da cultura digital em que estamos. Seria meramente uma reprodução do livro em papel? Um arquivo eletrônico PDF? Uma animação multimídia cheia de cliques?
As possibilidades de leitura propiciadas por computadores, tablets, celulares e outros dispositivos extrapolam o que chamamos de livro. Como uma mídia de convergência de infinitas tecnologias e linguagens, a internet permite que textos, imagens, tabelas, infográficos, vídeos, games e diversos aplicativos multimídia possam ser simultaneamente acionados para contar uma história, seja ela ficcional ou informativa, linear ou descontínua.
Arte Fora do Museu (*5), por exemplo, é um projeto digital sobre as obras de arte que estão nas ruas de São Paulo. Ele reúne informações em textos e fotografias, que poderiam estar em um livro, mas foram publicados online, agregando vídeos e georreferenciamento das obras. É pouco provável que alguém defina o Arte Fora do Museu como um livro digital ou um e-book. Mas muitos dos que navegaram por aquelas páginas leram tanto quanto fariam em um e-book sobre o mesmo tema. Além disso, o conteúdo de um projeto como este está distribuído pela rede, no YouTube, no Facebook, no Flickr, fazendo com que as informações sejam acessadas de muitas maneiras, fragmentadas, e que se alguém tiver interesse em se aprofundar no assunto, possa sempre ser levado à fonte original.
Os e-books e os PDF de impressos não aproveitam uma importante possibilidade trazida pelo digital: o hipertexto. O termo hipertexto, cunhado por Ted Holm Nelson nos anos 1960, significa, nas palavras de Sergio Amadeu da Silveira “uma escrita não sequencial, um texto que se bifurca e que permite ao leitor escolher o que deseja ler. São blocos de textos, conectados entre si por nexos que formam diferentes itinerários para os usuários”. O hipertexto coloca a possibilidade de os indivíduos aprofundarem conhecimento nos temas que os interessem de maneira livre e autônoma. Nesse sentido, as possibilidades abertas pela digitalização de conteúdos são potencializadas pela expansão do acesso à internet.
Antes, a veiculação da informação e do conhecimento estava vinculada a suportes materiais: livros, discos, CDs, apostilas, enciclopédias. Para disseminar informações era preciso ter acesso a esses recursos materiais, caracterizando um modelo de comunicação “de um para muitos”. A internet deu a todos o poder de criar, moldar e disseminar informações com a ponta dos dedos, abrindo a possibilidade de uma comunicação “de muitos para muitos”. O modo como produzimos e consumimos informação atualmente é muito diferente do que era no curto espaço de tempo de 20 anos atrás.Continue reading