Recursos abertos podem ajudar na transformação da escola, apontam especialistas e docentes

Publicado em Observatório da Educação em 23/10/2014

Durante o debate de lançamento da pesquisa “Recursos Educacionais Abertos no Brasil: o campo, os recursos e sua apropriação em sala de aula (saiba mais)”, na terça (30/09), Jamila Venturini, coordenadora do estudo, apontou que nenhum entrevistado discordou da necessidade de transformação da escola e que todos veem a incorporação de Recursos Educacionais Abertos (REA) como um dos desafios. A percepção também se refletiu na fala dos debatedores presentes no evento.

De acordo com Jamila, as entrevistas da pesquisa apontaram para uma necessidade de transformação estrutural da escola em detrimento de uma transformação superficial. “Para muitos entrevistados isso tem a ver com uma mudança na cultura escolar, na transformação das relações entre professores e alunos, na superação da relação entre recepção e transmissão da informação e do conhecimento”, explicou, apontando como os REA podem contribuir para isso.

Para Fernando Almeida, diretor de orientações técnicas da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, os REA retomam o princípio de que, em um produto de qualquer natureza, toda a humanidade teve participação indireta em sua construção. Assim, todos fazem parte de uma ampla rede de produtores de conhecimento. “Esse é o caminho para a gente pensar na estrutura de todo o edifício de opressão e de propriedade exclusivista para a construção de uma sociedade em que a liberdade possa ser a pauta do nosso relacionamento”, explicou.

REA na escola

Alessandro Freitas, professor de história na educação básica, pôs em evidência a possibilidade do uso de REA na sala de aula como um passo importante para a reforma educacional, que se faz urgente. Nesse sentido, explicou que a situação de sala de aula é um desgaste e uma agressão tanto para os alunos quanto para os professores, porque a escola, por não absorver as mudanças que têm ocorrido de forma acelerada na sociedade, principalmente no que tange as tecnologias e a internet, está fora da realidade cotidiana dos alunos.

Ele questionou também o uso de material didático – seja apostilado ou em livros – escolhido e entregue sem a participação do professor e do próprio aluno que, segundo Alessandro, são os principais sujeitos da educação. “Os recursos educacionais abertos são uma oportunidade para os dois voltarem a ser o centro da educação. Quando os alunos percebem que estão fazendo parte, eles se interessam mais, participam mais; e ter conhecimento sobre esse tipo de licença é interessante tanto o rofessor quanto para o aluno”, conclui.

Priscila Gonsales, coordenadora do Instituto Educadigital e membro da comunidade REA Brasil, aponta que, embora a difusão dos REA ainda seja pequena no Brasil, há muito uso de objetos digitais em sala de aula. Segundo dados da pesquisa TIC Educação de 2013, 96% dos 1.987 professores da educação básica entrevistados em todo o país utilizam recursos obtidos na internet para a preparação de suas aulas ou para a realização de atividades com alunos. A maioria deles, 82%, já produzem conteúdos para suas aulas ou atividades com alunos com o auxílio das novas tecnologias.

Quando o assunto é a possibilidade de interagir com o material, criando novas versões e obras derivadas, 88% declararam fazer alterações nos materiais originais, contra 11% que não o fazem e somente 1% que acredita que não é possível editar ou usar os conteúdos de um modo diferente. Apenas 21% dos que integram, porém, publica as obras derivadas de alguma maneira.

Para ela, “os professores não se reconhecem como autores, a autoria vem de fora. Esse é o ponto mais importante quando a gente fala de educação aberta e de REA. É mais do que licença, é valorizar o ponto de vista pedagógico que essa a questão traz. É um caminho muito longo ainda a percorrer, os professores precisam aprender a usar. Eles podem ser produtores usando o que já existe”. Jamila concordou que esse papel faz muito sentido ao professor, mas questionou: “talvez a gente tenha um sistema que não necessariamente valoriza o professor nesse papel de criação de conteúdo, de intelectual”. Nesse sentido, Luiz Augusto Pereira, membro da comunidade Wikimedia, ressaltou a importância de os professores também compartilharem suas produções, publicando seus conteúdos na internet.

Já Carlos Seabra, Coordenador Técnico Pedagógico da Editora FTD, acredita que os professores estariam despreparados para lidar com as tecnologias, mas que seus alunos o estão. Ele sugere que a mudança possa começar justamente pelo processo de apropriação do conteúdo e de sua produção. “Einstein já dizia: mais importante que conhecimento é imaginação. É preciso ter imaginação pedagógica”, afirmou.

Para Priscila, porém, o professor já “está digital” no meio fora da escola e mantém o modelo tradicional de ensino por conta do ecossistema da educação,  das avaliações tradicionais, do receio de utilizar os aparelhos móveis. “E o professor está sozinho, a gente não tem política pública de formação que estimule a colaboração entre os professores, ele não tem estímulo para que essa colaboração aconteça”, argumentou, apontando que a formação continuada é a chave para a questão.

Incidência política

De acordo com Oona Castro, coordenadora do Programa Catalisador da Wikimida no Brasil, um dos achados da pesquisa foi a existência de poucos recursos, na língua portuguesa no Brasil, que podem ser incorporados pelos projetos Wikimedia por questões de licenciamento. “Esse retrato de como o campo tem atuado é fundamental para a gente pensar a incidência política. Para a própria comunidade Wikimedia, e que tiver vontade de incidir sobre a construção do campo de REA, esse é um diagnóstico que dá a dimensão do quadro de hoje”, explicou.

Denise Carreira, coordenadora do programa de educação da Ação Educativa, enfatizou também a importância do trabalho para aprofundar a atuação das organizações do campo educacional. “Conseguimos que, no substitutivo do Plano Municipal de Educação de São Paulo, fosse incorporada a agenda de REA, e estamos levando isso também para o debate nacional, inclusive sobre a base curricular nacional comum, um debate muito importante que vai acontecer nos próximos dois anos no Brasil como decorrência da aprovação do Plano Nacional de educação”, concluiu.

Estudo indica que muitos recursos educacionais digitais na rede têm restrições de uso e distribuição

A publicação “Em Questão 11 – Recursos Educacionais Abertos no Brasil: o campo, os recursos e sua apropriação em sala de aula”, lançada no dia 30/09, traz resultados de uma pesquisa realizada pela Ação Educativa, com apoio da Wikimedia Foundation, que identificou os principais atores do campo dos Recursos Educacionais Abertos (REA) no país, assim como as oportunidades e obstáculos para o uso e a apropriação destes materiais em língua portuguesa (veja aqui a íntegra do relatório).

Um dos itens analisados pela pesquisa foi a condição dos direitos autorais dos materiais encontrados. O estudo revelou que, dos recursos educacionais disponíveis nos portais analisados, 43,7%, tinha direito autoral padrão (todos os direitos reservados); 13,4% detinha direito autoral padrão com intenção de flexibilizar; 22% com recursos licenciados de forma flexível (Creative Commons, atribuição, não comercial e/ou sem derivações); 10,8% eram de domínio público; e somente 4,3% disponibilizam os recursos de forma livre (Creative Commons, atribuição; e Creative Commons, atribuição, compartilha igual). O restante, 5,6%, não foi possível determinar.

“As tecnologias trazem mais possibilidades de interação com os conteúdos e as chamadas licenças livres são as que garantem aos cidadãos maiores liberdades nesse sentido e com restrições mínimas”, afirma Jamila Venturini, coordenadora da pesquisa.

A amostra analisada não incluiu os projetos Wikimedia, entre eles a Wikipédia, Wikiversidade, Wikilivros e Wikisources, que oferecem centenas de milhares de recursos livres; focou em outros repositórios online, a fim de se identificar, inclusive, quais deles teriam licenças compatíveis com esses projetos.

Ainda que a maioria dos portais expressem em sua missão a intenção de fazer circular o conhecimento e promover o direito à educacão, predominam recursos sob o direito autoral padrão. Em alguns casos há uma tentativa de se colocar uma licença alternativa que falha em se cumprir. O número significativo de obras em direito autoral padrão com a intenção de flexibilização evidencia que falta de conhecimento sobre como se licenciar uma obra.

“Por outro lado, o número mostra que há uma consciência sobre a necessidade de se flexibilizar os direitos autorais e um conhecimento genérico sobre as licenças alternativas que, por vezes, esbarra em uma legislação excessivamente restritiva. Caso a intenção de flexibilização tivesse de fato se materializado, o número de recursos flexíveis, livres, e em domínio público superaria o de conteúdos protegidos, chegando a quase 50% da amostra analisada”, comenta a pesquisa.

A pesquisa analisou 22 portais de recursos educacionais on-line (em sua maioria voltados à educação básica) e 231 recursos educacionais abertos, com objetivo de mapear as produções existentes no que diz respeito à sua missão, aos tipos de licença adotadas, a que etapas e modalidades da educação são direcionadas, em que áreas do conhecimento, se permitem ou não a colaboração dos usuários, quais são os critérios de busca e se possuem algum tipo de suporte específico para o uso em sala de aula.

Durante a pesquisa, também foram entrevistadas 30 pessoas, entre pensadores que lidam direta ou indiretamente com REA, produtores de conteúdos educacionais digitais e gestores públicos, com o objetivo mapear posições sobre a produção e circulação destes materiais.

Representantes de organizações da sociedade civil e da academia identificaram que a falta de conhecimento sobre como se licenciar uma obra é uma das principais barreiras para o avanço dos REA no Brasil.

O que são REA?

Os REA são materiais de ensino, aprendizagem e pesquisa – digitais ou não – que são disponibilizados de modo a permitir seu uso, adaptação e redistribuição de forma gratuita e com nenhuma ou o mínimo de restrições possível, geralmente em licenças Creativa Commons. Eles podem incluir cursos, livros didáticos, artigos de pesquisa, vídeos, testes, software e qualquer outra ferramenta, material ou técnica que possa apoiar o acesso e a produção de conhecimento.

Legislação e políticas públicas

A Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998) e/ou marcos legais inadequados são citados por representantes dos quatro grupos entrevistados como uma barreira para o avanço dos REA no Brasil. “Pelo menos três dos produtores entrevistados afirmam permitir e/ou defender o uso de seus conteúdos para causas nobres (uso educativo, por exemplo), apesar de não adotarem licenças flexíveis”, conta a pesquisa.

Além da legislação vigente, vêm sendo realizadas propostas legislativas sobre o tema, como o Decreto Municipal 52.681/2011, de São Paulo, que institui o Programa “Inovações Pedagógicas e de Gestão na Rede”; o Projeto de Lei 989/2011, do estado de São Paulo (aprovado pelo Legislativo e vetado pelo governador em 2013), que institui a política de disponibilização de Recursos Educacionais comprados ou desenvolvidos por subvenção da administração direta e indireta estadual; e, ainda, o Projeto de Lei 1.513/2011, que tramita na Câmara dos Deputado, que dispõe sobre a política de contratação e licenciamento de obras intelectuais subvencionadas pelos entes do Poder Público e pelos entes de Direito Privado sob controle acionário de entes da administração pública. A existência de interesses econômicos e o lobby por parte de grandes grupos aparecem, porém, como razões para o fato de as políticas públicas de fomento aos REA não avançarem no país.

Fonte: Ação Educativa