Há no entanto um grande paradoxo nisso tudo. Os e-books e seus dispositivos de leitura e, por outro lado, as próprias redes de acesso, são mecanismos formidáveis de controle. Fazer dinheiro com livros eletrônicos através das grandes corporações é interessante num primeiro momento, mas é algo que já não tem mais o vigor inicial da internet, e não tem mais o potencial da reprodução infinita que é fundamental para o capitalismo. Sinto que os editores não perceberam que eles passaram de divulgadores e criadores de caminhos de acesso a meros controlares de pastas virtuais, cuja senha principal, pelo que tudo indica, ficará na mão de três corporações. E que se sujeitar a este esquema é perder o principal campo de trabalho do editor que é a criação de redes de circulação de informação. Sinto que os editores estão caindo naquele conto do vigário “ganhe dinheiro trabalhando em casa”. Enfim, enquanto esse paradoxo não for resolvido, os tablets vão funcionar muito bem para nichos de mercado das grandes empresas de comunicação e publicação ou para autores anônimos que acreditam no poder da autopublicação, mas que só ganham destaque quando falam alguma obviedade dentro de uma caixa de eco. Esse paradoxo só se resolverá se começarmos a discutir primeiro o que são as licenças livres para depois enfrentarmos os problemas tecnológicos.
Marcella Chartier – Quais as perspectivas futuras em relação aos e-books no catálogo/na estratégia de vocês?
Jorge Sallum – Mínimas. Da forma que se apresenta, o Brasil realmente será apenas a periferia de uma rede comercial de arquivos, sem controle de como gerar mercado e informação de qualidade, isto é, divulgação e vulgarização de pesquisa, literatura significativa, crítica política etc. O livro eletrônico, por si só, não significa nada disso. Pois uma guerra fetichista sobre o melhor tablet, se com brilho ou sem brilho, se com 3G, se com internet, enfim, é que imperará. E os repositórios de cada empresa detentora desse quadro de luz chamado tablets permanecerão fechados para as estratégias comerciais hipercentralizadas de cada uma dessas empresas.
Marcella Chartier – Como a cópia de livros impacta em seu catálogo?
Jorge Sallum – Sou a favor da cópia de livros. Não acredito que a fotocópia substitua um livro e não acho que um aluno seja capaz de comprar todos os livros que precise durante sua longa formação. Por outro lado, vejo que enquanto os editores acadêmicos estão preocupados em garantir que ninguém leia sem autorização seus livros, as universidades lançam mão do acesso a grandes repositórios como o Jstor, oferecido pelo CNPq. E temos aí um novo paradoxo. Ao mesmo tempo em que a comunidade acadêmica (que é ao meu ver, no Brasil, o único grupo significativo que de fato lê em formatos digitais) tem acesso aos melhores artigos, sabemos que por melhores que sejam as pesquisas brasileiras, raramente elas poderão ser lidas em tais repositórios. E o pior é que os professores se desprezam a si mesmos e as agências de pesquisa como a Fapesp se pautam pela publicação fora do Brasil. A questão é muito complexa. Para entendê-la, talvez valha lembrar como o MIT justifica seu canal MIT World: divulgar as aulas pela internet é a maneira mais barata de fazermos circular as nossas ideias.” Não basta acusar o MIT, por exemplo, de “imperialista” digital, mas de criar, como editores, juntamente com o poder público, as agências de pesquisa, as universidades, políticas verdadeiras para a circulação das nossas ideias. A questão, portanto, sobre papel versus digital, sobre cópia e mercado esconde realidades muito maiores do que o mercado editorial, e se os editores não levarem a sério que a principal mercadoria deles são as ideias, é melhor mesmo que eles não existam.
Marcella Chartier – Existem projetos nos quais vocês utilizam ou pensam em utilizar licenças abertas ou que são identificados como recursos educacionais abertos? Se sim, quais são eles e como estão idealizados?
Jorge Sallum – Sim, temos a intenção de produzir uma linha de livros didáticos abertos, sob licenças CC-BY ou CC-BY-NC. Nossa intenção é fazer livros e ferramentas abertas que permitam a reedição do material coletivamente.
Marcella Chartier – Quais as principais dificuldades de vocês nesse processo?
no MinC. Nós não pretendemos fazer uma revolução e sim estabelecer um negócio que utilize das potencialidades das novas tecnologias de comunicação e informação. Estabelecer o campo de atuação do editor na discussão sobre recursos educacionais abertos, por sua vez, não é simples, pois ao fazermos isso apresentamos um modelo de negócio e não apenas uma contribuição.
Jorge Sallum – Nós já temos a agradecer a muita gente que se prestou a nos escutar e nos ensinou bastante. Trabalhamos num plano de negócio amplo, que só se viabilizará se conseguirmos editar livros para a rede pública de ensino com a ajuda da sociedade civil, de maneira colaborativa. É algo ambicioso, reconheço, e para isso precisamos de muita colaboração, parceria e financiamento. Precisamos envolver prefeituras, organizações não governamentais, programadores e principalmente professores. E estamos trabalhando para isso. A Hedra se associou com a Kow, uma empresa de TI com ênfase em automação editorial, e pensamos agora em como fazer com que um livro didático possa ser editado de maneira colaborativa e em rede. Também procuramos nos associar a escritórios de produção de material didático que atuam para as principais editoras, para que esses livros tenham exatamente a mesma aparência e qualidade do que há no mercado. Por outro lado, temos procurado nos inteirar da discussão sobre educação democrática e autogestão, pois acreditamos que haja muito em comum entre a forma de pensar material didático assim e uma educação descentralizada.
Marcella Chartier – Existem casos de autores que já desejam/propõem a publicação de seus títulos em novos formatos/novas licenças? Se sim, trata-se de um número expressivo?
Jorge Sallum – Fizemos recentemente o “Minidicionário Livre da Língua Portuguesa”, com o professor Mourivaldo Santiago-Almeira e sua equipe. A princípio tivemos que explicar em detalhes do que se tratava. A ideia foi tão bem acolhida que em seguida fomos convidados pelo linguista Gabriel A. de Araújo para fazer o primeiro dicionário de são-tomense, língua crioula africana de base portuguesa e que nunca foi dicionarizada, apesar dos seus mais de cem mil falantes. E ficou entendido de imediato que a licença aberta garantiria o financiamento institucional internacional e sua ampla circulação. Julgo este um caso bastante emblemático. Mas em geral não vemos resistência da maioria dos autores. Colocamos nossos livros no Googlebooks há muitos anos e está claro que para vender livros é preciso que as pessoas saibam que eles existem.
Marcella Chartier – De que forma a editora que você representa visualiza o futuro, tendo em vista o contexto atual de cópias de livros na internet e o questionamento da lei de direitos autorais brasileira?
Jorge Sallum – É lamentável que o diálogo sobre o direito autoral tenha sido interrompido. O Brasil tinha a chance de deixar de ser periferia em algo fundamental, que é a discussão jurídica sobre propriedade intelectual. Projetos realmente inovadores poderiam se beneficiar disso, principalmente na educação, grande déficit do país. No momento, acredito, que as discussões sobre o vértice tecnológico são bastante conservadoras e tendem a levar governo e sociedade para mais gastos inúteis em dispositivos falaciosos. Sou muito simpático ao Plano Nacional de Banda Larga e, particularmente, ao ProUCA, que pretende dar computadores para as crianças. Mas seguramente não estamos falando da mesma coisa quando pensamos em tablets, em formatos de ebooks etc. Esta discussão caminha estranhamente separada, e completamente apartada das propostas pedagógicas mais interessantes, apartada da descentralização da educação promovida desde o princípio dos anos 1990 pela criação do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), responsável pela municipalização do ensino. Ou acreditamos que basta jogar um tablet na mão das crianças e o país se refaz?
Marcella Chartier – Como pretendem se ajustar a essa nova configuração e como se preparam para ela?
Jorge Sallum – Nós não acreditamos na grande onda do ebook. Isto é ideológico e simplista. Não há necessidade de se preparar para a grande mudança corporativa e centralizadora. É preciso pensar agora em liberar conteúdo e voltar às origens do mercado editorial, que é a criação de mercado, mas também de sociedade livre, informada, capaz de discernir entre uma lei, um discurso, de se identificar com os lugares literários, de ter acesso à pesquisa. As livrarias são lugares de elite no Brasil. Nunca será um lugar de convívio dos milhões que começam a consumir e também a estudar. Mas o livro, seja lá em que formato, há de encantar as pessoas, e há de ganhar um balcão nem que seja virtual. Monteiro Lobato acreditava muito no livro da venda, no que chamamos hoje de “ponto alternativo”. Eu acho que não temos ainda uma fórmula específica para o Brasil, mas certamente, ela passa pela internet.
Marcella Chartier – Vocês buscam soluções de negócios se inspirando em casos de outras editoras que estão experimentando com modelos abertos, tanto do Brasil quanto de fora (como a Flat World Knowldge nos EUA)? Se sim, que casos/soluções enxergam como de sucesso?
Jorge Sallum – Não nos identificamos com a Flat World Knowldge, que julgamos bastante inovadora. Isto porque o livro didático, no Brasil, é algo tão particular quanto a literatura de cordel. É preciso entender sua história, a história dos grandes programas de aquisição do livro didático, que estão entre as três maiores compras de material didático do planeta. É preciso entender o que eram os cursinhos e o que são os sistemas de ensino. E principalmente porque o ensino médio e fundamental está tão separado da produção acadêmica. Acreditamos que necessariamente precisamos ser tradicionais para inovar, isto é, fazer livros e reafirmar sua utilidade, e demonstrar que um livro é conteúdo estruturado em equipe, e que isso deve ser feito localmente, e pode servir às estruturas já existentes.
Marcella Chartier – De que forma vocês avaliam a posição dos consumidores nessa nova configuração? Existe um canal aberto de comunicação entre vocês? As colocações deles são consideradas? Ou, ainda, existem pesquisas que trazem essas opiniões e que delimitam, de alguma forma, as direções tomadas pela editora?
Jorge Sallum – Há pouca pesquisa de mercado no Brasil e quando elas são financiadas pelos sindicatos, tendemos a desconfiar. Há muitos anos o BNDES, no período do Carlos Lessa, fez uma ampla radiografia do mercado e propôs uma política de financiamento das editoras, que foi logo esvaziada. Os dados eram alarmantes, com perdas anuais de 20%, que foram compensadas de certa forma por programas de aquisição de livros para bibliotecas como o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), criado 1997. Recentemente, a Fipe tem organizado uma recolha de dados, sob a coordenação da prof. Leda Paulani, da FEA, mas o fato é que temos ainda muito pouca informação do mercado, que trata informações estatísticas e perfis de leitores com total leviandade. Com isso, o consumidor do livro para nós é uma abstração bastante imprecisa.
Marcella Chartier – Como vocês acham que uma possível aprovação do PL-REA, em trâmite no Congresso Nacional, impactaria as vendas para o governo? (resumindo, o projeto define que o material didático comprado pelo governo precisa ser publicado na internet sob licença livre)
Jorge Sallum – Nós somos grandes entusiastas deste projeto. Ele é algo que provavelmente tornará viável a descentralização da compra num futuro próximo, garantindo qualidade e comprometimento dos atores envolvidos na franja mais distante da educação, que são os próprios professores. Será necessário pensar em alternativas para este material a ser licenciado pelo governo e é o que pensamos em fazer. Caso contrário, licenciar e reimprimir o mesmo material todos os anos seria algo como publicar o mesmo jornal uma semana seguida.