Pesquisa mapeou 22 portais de recursos educacionais. Apesar da intenção de liberar conteúdos, desconhecimento de licenças livres e Lei de Direitos Autorais restritiva ainda são desafios para a abertura de materiais para uso educacional
Debate Desafios da Conjuntura, promovido pelo Observatório da Educação na terça-feira (10/09), apresentou os resultados da pesquisa Recursos Educacionais Abertos no Brasil: o campo, os recursos e sua apropriação em sala de aula (veja aqui a publicação do relatório). O estudo, que procurou mapear os principais atores do campo dos Recursos Educacionais Abertos (REA) no país e desafios para apropriação destes materiais, revela que, embora haja intenção de liberar conteúdos em 49,3% dos recursos educacionais analisado analisados, 43,7% ainda tinha todos os direitos reservados, aumentando a insegurança jurídica de seu uso educacional.
Segundo a definição da Unesco, os REA são materiais de ensino, aprendizagem e pesquisa – digitais ou não – que são disponibilizados de modo a permitir seu uso, adaptação e redistribuição de forma gratuita, geralmente em licenças Creative Commons (saiba mais aqui). Seu princípio é o de considerar livros didáticos, artigos de pesquisa, vídeos, testes, softwares e qualquer outra ferramenta, material ou técnica como bens públicos, com nenhuma ou o mínimo de restrições possíveis.
A pesquisa, realizada pela Ação Educativa com apoio da Wikimedia Foundation, analisou 22 portais de recursos educacionais on-line (em sua maioria voltados à educação básica) e 231 recursos educacionais abertos, com objetivo de mapear as produções existentes no que diz respeito à sua missão, aos tipos de licença adotadas, a que etapas e modalidades da educação são direcionadas, em que áreas do conhecimento, se permitem ou não a colaboração dos usuários, quais são os critérios de busca e se possuem algum tipo de suporte específico para o uso em sala de aula.
Um dos itens analisados pela pesquisa foi a condição dos direitos autorais dos materiais encontrados, considerados uma das principais barreiras à circulação deste materiais. O estudo revelou que, dos recursos educacionais disponíveis nos portais analisados, 43,7%, tinha direito autoral padrão (todos os direitos reservados); 13,4% detinha direito autoral padrão com intenção de flexibilizar; 22% com recursos licenciados de forma flexível (Creative Commons, atribuição, não comercial e/ou sem derivações); 10,8% eram de domínio público; e somente 4,3% disponibilizam os recursos de forma livre (Creative Commons, atribuição; e Creative Commons, atribuição, compartilha igual). O restante, 5,6%, não foi possível determinar.
A pesquisa também ouviu 30 pessoas, entre pensadores que lidam direta ou indiretamente com REA, produtores de conteúdos educacionais digitais e gestores públicos, com o objetivo mapear posições sobre a produção e circulação destes materiais. Representantes de organizações da sociedade civil e da academia identificaram que a falta de conhecimento sobre como se licenciar uma obra é uma das principais barreiras para o avanço dos REA no Brasil. Ainda que a maioria dos portais expressem em sua missão a intenção de fazer circular o conhecimento e promover o direito à educacão, predominam recursos sob o direito autoral padrão. Em alguns casos há uma tentativa de se colocar uma licença alternativa que falha em se cumprir por falta de conhecimento sobre licenças flexíveis.
“Por outro lado, o número mostra que há uma consciência sobre a necessidade de se flexibilizar os direitos autorais e um conhecimento genérico sobre as licenças alternativas que, por vezes, esbarra em uma legislação excessivamente restritiva. Caso a intenção de flexibilização tivesse de fato se materializado, o número de recursos flexíveis, livres, e em domínio público superaria o de conteúdos protegidos, chegando a quase 50% da amostra analisada”, aponta o relatório.
REA e direito à educação
Segundo a coordenadora da pesquisa, Jamila Venturini, todos os entrevistados encaram os REA como um dos desafios a se considerar para que haja uma transformação estrutural da escola. “Para muitos entrevistados isso tem a ver com uma mudança na cultura escolar, na transformação das relações entre professores e alunos, na superação da relação entre recepção e transmissão da informação e do conhecimento”, explicou durante o debate de lançamento da pesquisa (leia aqui o texto de cobertura). “Talvez a gente tenha um sistema que não necessariamente valoriza o professor nesse papel de criação de conteúdo, de intelectual.”
Para Priscila Gonzalez, coordenadora do Instituto Educa Digital e membro da Comunidade REA Brasil,ainda que o uso de recursos educacionais abertos seja pequeno no Brasil, há muito uso de objetos digitais em sala de aula. Segundo ela, os professores criam muitos objetos, mas compartilham pouco. “Os professores não se reconhecem como autores, a autoria vem de fora. Esse é o ponto mais importante quando a gente fala de educação aberta e de REA. É mais do que licença, é valorizar o ponto de vista pedagógico que essa a questão traz”, defendeu.
Segundo dados da pesquisa TIC Educação de 2013, 96% dos 1.987 professores da educação básica entrevistados em todo o país utilizam recursos obtidos na internet para a preparação de suas aulas ou para a realização de atividades com alunos. A maioria deles, 82%, já produzem conteúdos para suas aulas ou atividades com alunos com o auxílio das novas tecnologias.
Quando o assunto é a possibilidade de interagir com o material, criando novas versões e obras derivadas, 88% declararam fazer alterações nos materiais originais, contra 11% que não o fazem e somente 1% que acredita que não é possível editar ou usar os conteúdos de um modo diferente. Apenas 21% deles, porém, os publica as obras derivadas de alguma maneira.
Educação e direitos autorais
Considerada a quarta mais restritiva do mundo, segundo levantamento do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai) da USP, a atual Lei brasileira de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998) impõe uma série de limitações ao uso de recursos com fins educacionais. Pela lei atual, filmes e músicas, por exemplo, só podem ser usados em atividades educativas com autorização do autor. Paródias ou uso de trechos por parte de alunos para criar produções próprias também são proibidas.Também não é possível copiar integralmente obras que ainda não estejam sob domínio público, ainda que para uso educacional. A única exceção é a reprografia (xerox) de “pequenos trechos”, feitos pelo próprio copista.
De acordo com a Rede pela Reforma da Lei de Direitos Autorais, que atuou durante debates de reformulação de lei a partir de 2007, a legislação atual é extremamente tímida ao tratar do direito de pessoas com deficiência. “Somente pessoas com deficiência visual são citadas nominalmente – mas mesmo nesse caso a legislação não prevê fiscalização para garantir que os detentores de direitos atendam suas necessidades. Assim, por exemplo, há grande dificuldade para que essas pessoas consigam de editoras versões digitais de livros para gerar versões em braile ou em áudio”, afirmam as entidades da rede, em publicação sobre o tema.
Em debate realizado pelo Observatório durante o processo de reformulação da Lei de Dirietos Autorais (LDA) em 2010, Carlos Affonso, professor de Direito da Faculdade Getúlio Vargas, apontou como estas restrições podem impactar a realização do direito humano à educação por limitar a circulação das obras. “Atualmente há desequilíbrio entre o incentivo à criação e o acesso ao conhecimento e à informação”, diz.
Em 2007, o Ministério da Cultura criou o Fórum Nacional do Direito Autoral, com o objetivo de promover e debater uma reforma da LDA atual. Após uma série de seminário, conferências e consultas, o Ministério da Justiça preparou um anteprojeto de reforma do direito autoral, que foi submetido à consulta pública em 2010. A proposta previa, entre outros pontos, que a possibilidade de exibição de filmes e de execução de músicas sem a autorização do autor para fins educacionais, a autorização para que bibliotecas, museus e outros órgãos de preservação do patrimônio cultural pudessem fazer cópias de obras que poderiam se perder, e a cópia livre de obras esgotadas, desde que sem fins comerciais, como é prática comum no ensino superior.
Em 2010, no entanto, a então Ministra da Cultura Ana de Hollanda brecou o processo de reforma da reforma da lei, que só voltou a ser debatida em outubro de 2012, na gestão de Marta Suplicy, que realizou uma série de modificações na proposta. O anteprojeto está agora na da Casa Civil e aguarda há algum tempo para ser enviado ao Congresso.
REA e políticas públicas
Apontados como alternativas às restrições do direito autoral e ao engessamento da escola, diversos projetos de lei, nos âmbitos federal, estadual e municipal, procuram incorporar a lógica de abertura e a flexibilidade das licenças livres dos REA às políticas públicas. O estado de São Paulo chegou a ter aprovada a lei nº 989/2011, que previa que fosse considerado um recurso aberto todo o conhecimento que for comprado ou desenvolvido com recursos públicos pela administração pública estadual. No entanto, ela foi vetada pelo governador e aguarda possibilidade de derrubada do veto pela Assembleia Legistativa do estado. Há ainda iniciativas no Distrito Federal e no Paraná. No âmbito federal, o Projeto de Lei Federal nº 1513/2011 está em tramitação da Câmara (saiba mais detalhes sobre os projetos).